De prata as delgadas facas, os finos garfos; de prata os pratos onde uma árvore de prata lavrada na concavidade de suas pratas juntava o suco dos assados; de prata as fruteiras, com três bandejas redondas, coroadas por uma romã de prata; de prata as jarras de vinho marteladas pelos artesãos da prata; de prata as travessas de peixe com seu pargo de prata inflado sobre um entrelaçamento de algas; de prata os saleiros, de prata os quebra-nozes, de prata os covilhetes, de prata as colherinhas com iniciais lavradas… E tudo isso ia sendo levado pausadamente, cadenciadamente, cuidando para que prata não esbarrasse em prata, rumo às surdas penumbras de caixas de madeira, de engradados ao aguardo, de arcas com fortes ferrolhos, sob o olhar vigilante do Amo que, de roupão, só fazia a prata ressoar, vez por outra, ao urinar magistralmente, com jorro certeiro, copioso e percuciente, num penico de prata, cujo fundo era adornado por um malicioso olho de prata, logo ofuscado por uma espuma que, de tanto refletir a prata, acabava por parecer prateada…
Eis os primeiros acordes de “Concerto barroco” (Companhia das Letras, 2008, tradução de Josely Vianna Baptista), novela lançada em 1974 pelo cubano Alejo Carpentier (1904-1980). O homem que, sendo da geração pré-boom, foi uma de suas maiores influências – basta dizer que cunhou a expressão “real maravilhoso” para definir o absurdo da realidade latino-americana – era um estudioso sério de música que tinha a ambição de fundir notas e letras tanto nos temas quanto em andamento e textura da linguagem. Nesta narrativa sobre um magnata mexicano da prata que, no século 18, viaja a Veneza e se envolve com grandes compositores do período barroco, a ambição se realiza plenamente desde uma abertura que, com suas pratas infinitas, é ouro puro.
14 Comentários
Bela, belíssima lembrança!
acho que em espanhol deve ficar menos rascante… o r de prata machuca um pouco o ouvido na repetição…
Renata, em espanhol a prata é mais tilintante, sem dúvida, mas jura que essa maravilha, nessa tradução caprichada, machucou seu ouvido?
Vou ser um pouco pedante e citar um mestre no gênero: Verlaine em “Chanson d’automne”
Les sanglots longs
Des violons
De l’automme
Blessent mon coeur
D’une langueur
Monotone
…(pois é…sabe que quase não postei de vergonha? parece que sou a princesa da ervilha…. mas…. em prol da honestidade…)
+1.
Confesso que também me incomodou. Creio que inserido no livro, e levando em conta o proprio tema, talvez encaixe melhor, mas assim, solto, eu achei esse trecho bem irritante, para falar a verdade…
Mas talvez seja porque eu estou trabalhando num sabado! 😉
Abraços.
Caro Sérgio, parece que também vou ser do contra. Mas também vou abrir a lata da ervilha e comer com a Renata. Incomodou também a mim, apesar da excelente tradução, ao que parece.
Do barroco latino-americano, tenho de Lezama Lima, Fugados, que é uma pérola, e cuja tradução é da mesma Josely Vianna Baptista, que foi exímia nesse livro.
Sobre a citação acima de um poema do mestre do simbolismo francês, Paul Verlaine, este, naturalmente não tem nada a ver com o barroco. Disse “um mestre do gênero” em fazer aliterações. Não confundi barroco latino-americano com simbolismo francês, apenas aproximei um dos efeitos dos gêneros.
Se o livro todo cometer esse exagero de linguagem, apesar da beleza que traz, a leitura, creio, deve se tornar um pouco cansativa. Tomara que eu esteja enganada, porque o trecho é belíssimo.
“I had a farm in Africa, at the foot of the Ngong Hills.”
Karen Blixen, Out of Africa. O livro inteiro nessa primeira frase, simples e clara. É um favorito pessoal.
Marcelo, Princesa da ervilha nada tem a ver com “comer” e sim com “sensiblidade.” Esta historinha você não conhece, né? Ou me meti aonde não fui chamada? Desculpa. Ah, escrevi “aonde” certo?
Da arte de escrever longas e belas sentenças…
Concordo plenamente com a Renata: “la plata” é muito mais cintilante aos ouvidos que a rascante “a prata”… mas o texto é instigante.
Independente de ser prata ou plata, o livro é de ouro. Quando chega no Padre Antonio então… (isso foi para despertar a curiosidade de quem ainda não leu). Agora, “los Pasos Perdidos”, hombre!!
Em tempo: Filomeno! É mesmo! Obrigado Sérgio, por me conduzir a lembrar dessa grande figura humana.