Tentei de novo falar com você esta madrugada, mas o quintal estava povoado de lobos ganindo contra minha sombra. As feras da tua família são estúpidas o tempo todo, numa insistência que me impressiona. Vou matar todos aqueles bichos, aquelas cadelas negras, apesar da admiração que nutro pelas bestas puras. É um cerco medieval, minha musa de castelo. E como de tudo faço literatura, graças à fidelidade com que desprezo a vida e conforme minha incapacidade aberrativa de viver, acabei achando bonito aquele espetáculo de urros e pulos, de dentes e unhas na escuridão da casa, tudo para preservar a imaculada jovialidade dos teus dezesseis anos. Reconheço: o teu pai, esse monstro de asas de morcego e orelhas de burro, é mesmo um homem sutil, joga com as minhas armas, e mal sabe.
E como, para completar, havia lua cheia – das derramadas – sentei no meio-fio e puxei dois charutos de maconha, com os cães latindo atrás de mim num furor melancólico.
Às vezes, os livros já soam seus primeiros acordes no volume máximo. Como “Trapo” (Record, 2007, 7.a edição), romance lançado em 1988 por Cristovão Tezza.
10 Comentários
Já tinha ouvido falar bem desse romance do Tezza, escritor definitivamente “descoberto” após o sucesso de “O Filho Eterno”.
Depois de conferir esse começo animador, pretendo pegá-lo para ler.
Abraço a todos. Bom domingo.
Pra nós da Familia Rio Apa, que vimos o Tezza embalando seus primeiros escritos, consertando relogio, jogando de ponta direita ( péssimo) e fazendo teatro popular, é uma certeza que se cumpre. Leiam o Ensaio da Paixão e Gran Circo das Américas. Kim Rio Apa
No Trapo já se prenunciavva o escritorzaço que viria…alias que já era realidade, porque esse livro também é muito bom, embora de excessiva tributação à literatura beat, notadamente a Bukowski…
Tenho a edição primeira, da Brasiliense, quando descobri o cara. Tezza talvez seja o grande nome da literatura brasileira atual.
eita!!!… que começo bom!!… quero mais…
Ótimo início!
Li o “Trapo” mas nem me atentei a essa pérola.
w.m.carvalho
Pode até parecer estranho, mas gostei mais do ritmo alucinante do Trapo do que d’O Filho Eterno… questão de opinião
Legal que tem um pessoal que leva o Trapo tão a sério que tenta escrever igual ele, e essas p@#$*….
Vale a conferida tão logo possível. Engraçado que sábado agora cmprei Filho Eterno em uma promição…
Espero gostar de ambos, pois de começo o escritor vai muito bem.
A propósito, segue o link para um texto quiçá tão convulso quanto:
http://www.cristovaotezza.com.br/textos/palestras/p_territorioescritor.htm
Abri uma vez esse livro, numa livraria qualquer, já faz um tempo…
Mesmo depois de lida e relida a passagem parece não perder a força…coisa rara…
Mesmo assim, de Trapo só conheço o começo. Que raiva dá, pensar nos livros que ainda não consegui ler por inteiro.
Tezza tem uma história. É bom lembrarmos disso, pois “Filho Eterno” tende a ofuscar outros títulos magníficos do autor.