Era uma vez e uma vez muito boa mesmo uma vaquinha-mu que vinha andando pela estrada e a vaquinha-mu que vinha andando pela estrada encontrou um garotinho engrachadinho chamado bebê tico-taco.
Seu pai lhe contava aquela história: seu pai olhava para ele através dos óculos; ele tinha um rosto peludo.
Não deixa de ser uma prova de que não há palavras proibidas, apenas maior ou menor habilidade no uso delas, o fato de “Um retrato do artista quando jovem” (Alfaguara, 2006, com bela tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro), romance lançado por James Joyce em 1916, começar com a mais batida das fórmulas, “era uma vez” (once upon a time).
40 Comentários
Quem entende de “vaquinha-mu” é o Renan VaCalheiros.
Eu sou entendido de boi preto. Que nem o Riobaldoiola.
Música….. como a música que Guimarães Rosa tocava….. o bom do texto é que basta você abrir de novo a página e lá está a música que só nos seus ouvidos toca ……
Eu nunca me cansarei de desfrutar da comicidade dos suspiros femininos (ufa… perdi até o ar…). Mulher leva tudo a sério, eis o que as põe a perder. E quanto menos entende, mais louva a “profundidade” do autor.
EVENTO CULTURAL ANTI-PT
Estive presente à passeata fora-Lula, no dia 04 de agosto. Fiquei matutando e pensei na idéia da realização de um evento cultural (shows, cartuns, teatro, entrevistas, palestras) anti-PT. Pelo fato da grande maioria dos acadêmicos e artistas serem pró-socialistas, é provável que um evento assim contaria com poucos conferencistas e mais artistas amadores do que profissionais. Mas talvez isto seja uma vantagem. A presença de artistas amadores pode enfatizar o caráter popular e não institucional do evento. E pode ser um passo importante para o contato pessoal da população anti-petista.
Quem poderia participar como organizador, conferencista ou artista? Em princípio, todo mundo, exceção feita a marxistas e nazistas (que segundo a minha opinião, são um tipo de socialistas bem agitados).
Renato
Merda, adorei esse Começos Inesquecíveis.
O Mindlin disse que na Europa você só pode ser uma coisa: ou é fã de Joyce ou é fã de Proust. Os dois não pode, os dois não dá.
Li Proust e detestei.
Conheci agora o Joyce-mu e adorei!
Sério, dá uma olhada nesse link. A fala da/do gato(a) lembra de-mais esse paragrafo que você postou.
http://www.omelete.com.br/quad/100001036/George_Herriman___Krazy_Kat.aspx
(sem falar que é muito bom)
Soberbo o Joyce, soberbo esse Retrato…
Joyce exige que o leitor entre de alma no texto, do contrário “não rola”…
Talvez esteja aí a dificuldade de assimilação por parte de muitos.
O que me deixa passado é o fato de mihares (talvez milhões…) de leitores dizerem execrar Joyce, sem ter lido sequer um continho do irlandês.
E pior, além de execrar, muitos deles destilam verdadeiro ódio por quem diz que gosta.
Atenção tísicos acadêmicos do blog: estamos sendo vítimas inocentes do sadismo perverso de Sérgio Rodrigues. Sabendo que à presença de gênios é vã a tentativa de parecer inteligente, ainda assim – e por isso mesmo – o senhor Rodrigues vem insistentemente os convidando à discussão.
Não satisfeito com Guimarães Rosa – sobre quem o último comentário relevante foi escrito por Álvaro Lins – traz-nos agora o blogueiro o grande destruidor de críticos e taxiologistas, o terror das intelectuais dos CAs de letras, nada menos que James Joyce, a ubíqua lacuna dos currículos beletristas.
Aí já é demais. O que mais precisará acontecer? Não chega já? Será preciso Borges, ou (sadismo dos sadismos) quem sabe a presença do próprio Shakespeare para que o suplício tenha fim?
Por favor, Sérgio Rodrigues, sobre patologia congênita não se tripudia. Os literatos masoquistas já sofremos o bastante.
Por favor, Sérgio, um pouco de Chico Buarque, Mirisola, Fernanda Young, Ana Miranda, Bernardo Carvalho, Milton Hatoum. Por favor.
Encarecidamente,
Ui, Ernstizinho.
Mirisola e Fernanda Young eu gosto de discutir enquanto faço as unhas no cabelereiro. Diante de Mirisola e Fernanda Young, até meu peixe dourado parece inteligente.
Aliás, bofe, muito chique ler Fernanda Young no cabeleiro. Mais chique, acredite ou não, que folhear a Caras.
caro Sérgio. descobri ser blog dia desses e ele é simplesmente imperdível. assinei o feed e, sempre que você atualizar, estarei por aqui lendo.
abs.
Caro Sérgio. Sei que você continua Todoprosa e isso é muito bom. A questão é que o amigo, com a desclassificação prematura e injusta do Nomínimo, resolveu escalar o habilidoso A Palavra É isolado na ponta esquerda do novo time. O craque praticamente não recebe mais bola, e nós, leitores, ficamos com aquela cara de torcedor-sem-zico-no-maracanã. Jogue ao menos às quartas e domingos. Um abraço.
Bonamigo: seu comentário de estilo lulista contém muita verdade. O que você não sabe é que o tal ponta-esquerda, com os salários atrasados, anda gordo e fora de forma. Mas prometo ter uma conversa séria com o homem, mexer com seus brios. Uma atuação por semana me parece uma expectativa razoável.
Daniel: seja bem-vindo e fique à vontade.
Abraços.
Para quem quiser ler mais deste livro de Joyce:http://www.objetiva.com.br/objetiva/cs/files/images/capas_livros/857302786x.pdf
é o tempo dos hiatos tristes e das vagas razões e da pouca fé do povo
Sérgio,
Eu estou quase comprando o “Ulisses” a um certo tempo, me ajude, qual edição é melhor?
En contrei da Ed. Objetiva e da Ed. Civilização Brasileira.
[]’s
Victor,
Recomendo a você fugir da tradução do Houaiss, o lexicógrafo. O próprio James Joyce, soubesse o português, sentiria dificuldades imensas para entender o Ulisses na versão houaissiana (este adjetivo, modéstia à parte, é um neologismo que acabei de criar; ele não aparece sequer no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).
Millôr, cito de cabeça, dizia que Houaiss era o homem que mais conhecia palavras da língua portuguesa, porém não sabia juntá-las num período.
Victor, ao contrário do Rafael, não estou entre os (muitos, muitíssimos) que abominam a tradução do Houaiss, embora ela tenha problemas mesmo. Mas você estará mais bem servido pela da Bernardina Pinheiro – isto é, a da Objetiva. Um abraço.
Sobre a tradução de Ulysses, diria que ambos tem qualidades, por isso o que importa são as diferenças. A edição do Houaiss é soberba, um clássico, ele fez coisas sensacionais. É só, por exemplo, apanhar alguns poemas da obra e ver como em português o cara faz milagre para transmitir as mesmas idéias. No entanto, o texto em que Houaiss se baseou para traduzir é da primeira edição, que ainda continha alguns erros que posteriormente foram corrigidos. Além do mais, qualquer língua muda bastante com o tempo e a tradução da Bernardina, além de também excelente, é mais atual. Por fim, a edição da Objetiva contém alguns extras, como boas notas e comentários e por isso vale cada centavo.
Obrigado pelas dicas 😉
Já encomendei a edição da Objetiva.
[]’s
O Brasil é isto aí. Um semi-analfabeto (Rafael) cita Millôr (quem?) para desmerecer a tradução do Ulisses pelo Houaiss…
Na edição de Hamlet que tenho em casa, o nome do Millôr Fernandes, o tradutor, aparece com mais destaque na capa que o de Shakespeare, como vocês podem conferir no site da Livraria Cultura:
http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=98812
Esta é prova pictórica de que Millôr, maior que Shakespeare, tem autoridade para desmerecer, desqualificar, aviltar, amesquinhar, achincalhar, degradar, abandalhar, desluzir, desgabar e detratar Houaiss.
Viu só, jota-jota: quando eu me esforço, consigo desenvolver argumentos tão sérios e refinados quanto os seus.
Essa história de menosprezar a tradução do Houais para o Ulisses é conversa de maria-vai-com-as-outras… uma vilania espalhada pelo Millôr (que cá pra nós, não é esse gênio todo que ele mesmo acredita ser) e pelo finado Paulo Francis. A tradução do Houais é elogiado por gente que entende muito desse babado ai… Quem prefere a da Bernardina está em todo o direito, mas não precisa desqualificar a outra, que foi feita com trmendo senso profissional e com conhecimento intelectual.
Concordo plenamente, Cezar, o Millôr tem um ego infinitamente maior que seu talento literário. O sintoma dessa patologia é a capa da edição de Hamlet traduzida por ele: o nome do Millôr destaca-se soberanamente e o do Bardo, pobrezinho, fica discretamente embaixo, quase escondido. Um desavisado, diante da capa, acreditaria que Millôr é o autor de Hamlet, peça traduzida por Shakespeare.
Não obstante, continuo achando a versão de Ulisses laborada pelo Houaiss (com dois esses) desnecessariamente obscura, muito mais que o texto original. Tire-se o chapéu ao pionerismo, à coragem de empreender a portentosa tarefa de traduzir esse ícone do modernismo, às soluções brilhantes para passagens extremamente espinhosas. Apesar de tudo isso, Houaiss criou hermetismos desnecessários.
Quanto à frase de Millôr, que citei de cabeça apenas para descontrair, ela não é de toda injusta. Veja só o que o Houaiss escreveu sobre as cervejarias:
“Em ambientes fechados, as mesas cervejeiras tendem a ser, se de madeira ou de metal, sólidas e robustas. Se em ambientes abertos, primaveris, veranescos, estivais, jardinais, as mesas, quase sempre metálicas (nem de vime se usam), são levitantes, o mesmo acontecendo com as cadeiras, para que, não abrutadamente, o bibente se balanceie. […] A cerveja se sente bem com salmourados, avinagrados, defumados, embutidos, salados, enfriados e uma série de ados. Mas não se trata de consumo intenso, é claro, pois que o consumidor já veio adequadamente alimentado para a mesa cervejal. Em fim de festa, primaziando certos mitos, poderá ir até um chucrute” (A Cerveja e seus Mistérios. Rio de Janeiro, Salamandra, 1986)
Palavroso e horrível. Eca!
Início maravilhoso, em inglês a cadência meio infantil é melhor reproduzida.
James Joyce só pode ser lido plenamente em inglês.
Qualquer texto, a rigor, só pode ser lido plenamente na língua em que foi escrito. Mas nem por isso o texto bem traduzido deixe de ser lido com fluidez e perfeita compreensibilidade. Dizer o contrário, se é isso que o vejabem está dizendo, é pedantismo.
“Qualquer texto, a rigor, só pode ser lido plenamente na língua em que foi escrito.”
De fato, esta é a regra, a qual vale sobretudo para grandes estilistas, como James Joyce.
Há, todavia, exceções: a mais famosa, em língua portuguesa, é a tradução de Eça de Queirós ao livro King Solomon’s Mine de Henry Rider Haggard. Eça cortou parágrafos, modificou nomes, pôs adjetivos inexistentes no original, resultando numa versão superior à original.
Compare o original com a tradução eciana:
Original:
“And now it only remains for me to offer apologies for my blunt way of writing. I can but say in excuse of it that I am more accustomed to handle a rifle than a pen, and cannot make any pretence to the grand literary flights and flourishes which I see in novels–for sometimes I like to read a novel. I suppose they–the flights and flourishes—are desirable, and I regret not being able to supply them; but at the same time I cannot help thinking that simple things are always the most impressive, and that books are easier to understand when they are written in plain language, though perhaps I have no right to set up an opinion on such a matter. ‘A sharp spear’, runs the Kukuana saying, ‘needs no polish’; and on the same principle I venture to hope that a true story, however strange it may be, does not require to be decked out in fine words.”
Tradução do Eça de Queirós:
“Resta-me pois implorar benevolencia para a minha tosca maneira de escrever. Estou mais habituado a manejar a carabina do que a penna–e sempre me foi alheia a fina arte dos arrebiques e floreios litterarios. Talvez os livros necessitem esses floreios e ornatos: não sei, nem possuo auctoridade para o decidir: mas, na minha barbara idéa, as coisas simples são as mais impressionadoras–e mais facilmente se deve acreditar e estimar o livro, que venha escripto com séria e honesta singeleza. ‘Lança aguda não precisa brilho’, diz um proverbio dos Kakuanas: e, movido por este conselho da sabedoria negra, arrisco-me a apresentar a minha historia, núa, lisa, nas suas linhas verdadeiras, sem lhe pendurar por cima, para a tornar mais vistosa, os dourados galões da Eloquencia.”
O estilo de Eça, inconfudível, revela-se em pequenos detalhes: “tosca maneira de escrever”, “minha bárbara idéia”, “conselho da sabedoria negra”, “dourados galões da Eloqüência”. Eça foi ousado a ponto de suprimir completamente uma viva cena de batalha (Capítulo 13 do original), substituindo-a por este parágrafo de fina ironia:
“Não contarei os pormenores sangrentos d’este grande combate, que se ficou chamando a ‘batalha de Lú’. Todos estes medonhos conflictos de selvagens, mesmo travados com a disciplina dos Kakuanas, se assemelham. É sempre uma vasta confusão de corpos escuros e emplumados, um estridente ruido de escudos entrechocando-se, azagaias reluzindo no ar, saltos, guinchos, uivos, clamores immensos onde destaca uma nota assobiada, o sgghi! sgghi! Que solta o selvagem quando trespassa com o ferro o inimigo.”
A cena original começa assim:
“Slowly, and without the slightest appearance of haste or excitement, the three columns crept on. When within about five hundred yards of us, the main or centre column halted at the root of a tongue of open plain which ran up into the hill, to give time to the other divisions to circumvent our position, which was shaped more or less in the form of a horse-shoe, with its two points facing towards the town of Loo. The object of this manœuvre was that the threefold assault should be delivered simultaneously.”
Ouvi dizer, porém nunca confirmei a notícia, que parte da respeitabilidade que Paulo Coelho angariou lá fora (Levi Strauss, o antropólogo, elogiou seus livros!) deve-se à perícia dos seus tradutores, que, nas suas versões, melhoraram incrivelmente a “tosca maneira de escrever” do nosso Imortal.
Rafael,
À parte a habilidade do Eça, ele fez uma recriação do texto em tela. Tudo bem, diz-se que tradução é traição…Eça levou a traição a Haggard ao paroxismo. Para alguém que, por exemplo, vá estudar Haggard para uma tese/dissertação em língua portuguesa, seria imensamente útil e indispensável a leitura do original e/ou uma tradução menos “criativa”, concorda?
E tem mais, sobre essa coisa de o texto só poder ser lido na língua em que foi perpetrado. A rigor, mesmo, só o próprio escritor pode fazer uma leitura plena do próprio texto. E se aprofundarmos ainda mais o rigor, essa leitura plena só pode ser feita pelo próprio escritor apenas no exato momento em que o texto está sendo escrito. Passou daí, o autor já terá mudado sua visão de mundo, terá adquirido outras e novas informações e, portanto, será um leitor diferente em relação ao momento em que escreveu o texto. SEndo um leitor diferente, sua apreensão do texto também será diferente. Complicado?
É sim, mas é isso ai. Não se pode aprofundar demais o rigor dessas coisas sob risco de carimos num relativismo filosófico-estético vazio.
Um texto bem traduzido, sem exagero e sem invencionices, mais amarrado na linearidade, dá ao leitor uma margem, digamos, de 95% do que queria transmitir o autor do texto. Convenhamos, está bom demais…
O resto é pernosticismo.
Cezar,
Ao final das contas, tudo se resume ao velho aforismo de Heráclito, o Obscuro: “Tu não podes descer duas vezes no mesmo rio, porque novas águas correm sempre sobre ti.”
O fato é que há traduções mais fiéis e outras menos fiéis. Nem sempre a arte está com as últimas.
Olha, Cezar, eu apostaria bom dinheiro, sem lhe conhecer, em duas deduções iniciais:
-você nunca leu James Joyce;
-se leu, não entendeu.
Joyce tinha consciência plena do idioma em que escrevia, e tinha, igualmente, bons conhecimentos musicais. A chamada melopéia, p/ ele, era fundamental, e a precisão com que escreveu Dubliners e Portrait of the Artist não são passíveis nem de aperfeiçoamento nem de reprodução. As intenções do escrtiro ficaram consolidadas na última versão revisada por ele, e é diante dessa versão
continuando: e é diante dessa versão que os leitores operam, cada um no limite de suas competências. Leitura plena não existe para ninguém, o que existem são diferentes capacidades e expectativas. Mas quem não domina o idioma original da obra não está capacitado a se aprofundar em sua interpretação.
Há tantas sonoridades perdidas numa tradução que é mais honesto, a meu ver, tratá-la na condição de uma nova obra do que se iludir e achar que tudo bem, esse negócio de texto original é coisa de gente pernóstica etc. Isso, além de mentira, parece auto-engano da raposa que não teve boa formação intelectual e hoje tenta desdenhar das uvas que lhes são inalcançáveis.
Mesmo que estivéssemos falando de um autor mais direto e literal, Charles Dickens, p. ex. , muita coisa já se perde, a começar pelos trechos mais célebres (“it was the best of times, it was the worst of times”, p. ex.). Falar que James Joyce pode ser lido em tradução, sinceramente, é asnático, sobretudo porque os livros seguintes criaram universos tão complexos que mesmo o falante nativo precisa interpretar diversos níveis linguísticos, culturais, mitológicos etc até vislumbrar pelo menos parte das intenções do autor. Monoglotismo, quando se lida com alta cultura, é uma forma de analfabetismo.
“Falar que James Joyce pode ser lido em tradução, sinceramente, é asnático…”
Bemveja, é por afirmações inacreditáveis como essa que a cômica persona ultra-elitista e afogada em certezas que você vende aqui no Todoprosa (por vezes engraçada de verdade, reconheço) perde o respeito de qualquer um que esteja interessado em discutir literatura a sério, com o mínimo de pose e o máximo de sinceridade que se possa conjurar nessa internet cachorra.
É evidentíssimo, meu caro, que Joyce pode – e deve – ser lido em tradução pela legião dos que não têm a sorte, como você ou eu, de ter no inglês uma língua forte e fluente. Isso é tão evidente quanto o fato de que, mesmo quando bem traduzido, um prosador profundamente mergulhado na linguagem como Joyce – assim como os poetas em geral – perde demais na viagem. Sem no entanto, veja bem, se inviabilizar.
E por que não se inviabiliza? Aqui a questão me parece ser de princípio. Ressaltar o caráter aproximativo e precário de toda tradução é saudável. Negar simplesmente a sua possibilidade, porém, significa condenar cada língua a ser um patético claustro literário. Além de infantilmente arrogante (“eu tenho um PS-3 e você não tem, mané!”), o mundo que essa visão cria é de uma falta de generosidade espiritual e intelectual que, a meu ver, vai contra o próprio espírito da literatura – essa luta necessariamente imperfeita e inconclusa, mas insubstituível, contra a falta de sentido e o silêncio.
Um abraço.
Meu caro Sérgio, opiniões radicais são mais do que legítimas, sobretudo quando se tem o trabalho de justificá-las. Se elas abalam certas visões de mundo, tanto pior, a vida é feita desses encontros com pontos de vista e realidades que são menos palatáveis do que gostaríamos.
James Joyce é um caso especial na literatura. As referências históricas e culturais do Portrait of The Artist, p. ex. (a importância de Charles Parnell ou de John Henry Newman) demandam recurso a um universo de conhecimento que dificilmente se abre a quem só foi educado e só lê em português.
No que tange à linguagem, é um fato por demais conhecido, p.ex, que o Joyce, no decorrer do livro, torna o discurso mais denso, mais complexo, p/ emular o próprio desenvolvimento intelectual do protagonista, e usa, já com imensa sofisticação, o mecanismo do “stream of consciousness” para reforçar, sem banalidades, a subjetividade do texto e as incertezas do personagem principal. Sinalizar isso de modo coerente numa tradução compromete a sutileza original do livro.
Finalmente, ler Joyce em tradução, mesmo os textos mais simples, sacrifica a musicalidade essencial do texto. O contraponto entre o sermão e o delírio do Stephen Dedalus no ápice do livro, por exemplo, tem uma complexidade estilística irreprodutível, e para averiguar isso basta recorrer a uma leitura comparativa do original em inglês e de traduções diversas à disposição.
Em resumo, traduzir Joyce remove do texto uma série de descobertas formais que são tão importantes quanto as epifanias narrativas do livro. JJ não se destina a leitores casuais, o que não impede ninguém de tentar, mas não espere que eu encoraje esse tipo de banalização. Pelo contrário: afirmo, sem hesitação, que vale a pena aprender inglês só pela recompensa inesgotável dos prazeres do texto de James Joyce.
Sobre idiomas estrangeiros: em tempos de internet, quem não sabe pelo menos inglês não sabe nada. Primeiro porque é um idioma fácil, em dois anos uma pessoa esforçada se habilita a ler o Portrait of the Artist. Admitir ignorância em inglês me faz desconfiar da integridade intelectual das pessoas de modo geral, da mesma forma que uma barba malfeita ou uma roupa manchada de molho de tomate podem sinalizar certo desleixo físico.
Existe um texto do Teofrasto, discípulo do Aristóteles, sobre os que obtêm instrução tardia, em que ele aponta os limites intelectuais e a infantilização perene de quem não teve, em idade escolar, uma formação canônica, universal (que inclui, obviamente, aprender idiomas). No Brasil, grassam diversas formas de justificar e racionalizar a ignorância, a começar pelo funesto e imbecil método Paulo Freire, mas a vida aponta no sentido oposto, da complexidade, então quem frequenta, p.ex., um blog sobre literatura, precisa ter uma visão realista sobre isso.
Cerveja,
Quanto a eu não ter lido o JJ, fica ao seu critério… não ganho nada em vc acreditar nisso e se ganhassse continuaria não me importando no que vc acredita…
Cara, o próprio Joyce acreditava sim que textos podiam ganhar leitura em traduções, tanto que colaborou para traduções de textos dele.
Vc leva a discussão pra outro lado, de forma sempre a enfatizar uma erudição que vc julga incrível, fantástica.
Vc torce argumentos … por exemplo, cita que JJ usa o mecanismo do “stream of consciousness” para reforçar, sem banalidades, a subjetividade do texto e as incertezas do personagem principal..blá-blá-blá….
Isso não tem nada a ver com o que se estava falando…
Eu poderia contra-argumentar, na mesma linha, que “stream of consciousness” foi técnica copiada por JJ, nem foi originalidade, já tinha sido usada de forma ainda mais contundente pelo francês Edouard Dujardin… blá-blá-bla…
Mas não tenho saco nem tempo para ficar nessa exibição ôca.
Cara, volto a um argumento que coloquei aqui dias atrás: com toda essa pompa e conhecimento, quero ler um livro teu… me indique o título, que saio agora e vou à livraria adquiri-lo… certamente que vou me deparar com uma obra-prima fantástica.
PS. Pode ser em inglês, companheiro. Juro que dá pro gasto, a não se que vc o tenha escrito em inglês arcaico, por exemplo… ai realmente fico em falta.
PS. Não corri desse brasilzão velho de guerra para viver na Inglaterra, estou aguentando o tranco aqui mesmo.
E sem me esconder atrás de pseudônimos babacas…
Cezar Santos, Joyce se comunicava com seus tradutores, por motivos muitas vezes mais pragmáticos do que poderia supor (Ulysses, especificamente, não se tornou Ulysses do dia p/ a noite, teve de ser divulgado e defendido a muito custo). Mas isso nada importa: nenhuma dessas traduções resistiu ao tempo.
Quanto ao “stream of consciousness”, não se superestime: eu não estava falando com você, que, aliás, não soube responder a essa alegação de que o ritmo interno usado pelo Joyce não se reproduz em outros idiomas. Sua contrariedade não esconde o fato de que você não tem exemplos que comprovem a tese de que faz sentido ler Joyce em tradução, ou que pelo menos relativizem os motivos que citei para destacar a singularidade do estilo do Joyce.
Os elementos que mencionem são integrais, aliás são a base para a abordagem do estilo do Joyce, se você considera isso erudição precisa ler muito mais. Quando você diz que o Dujardin foi mais “contundente”, está falando bobagem: é um livreto banal, mundano, está à disposição, basta ler– em francês, bem-entendido.
Ô Coisa, qualquer livro está à disposição… basta ler… claro… que obviedade mais óbvia… mas evidentemente, partindo de vc, isso ai deve ser uma “iluminação” (ou poderíamos dizer epifania? rsssss…)
Eu fiz algum juízo de valor sobre o livro do Dujardin? Falei que o livro era bom ou ruim? Olha a argumentação torcida de novo…
Cara, tu chega a ser ridículo…
Desisto de vc, cerveja…
Aliás, desisto não…estou esperando o título de seu livro para adquiri-lo, ok?
Passar bem.
Não, nem todo livro está à disposição.
Sim, você fez um juízo de valor sobre o livro do Dujardin (“contundente”).
Meu atual projeto literário: “À Cezar o que é não é de Cézar”, obra dramática sobre uma pessoa às voltas com esforços prometéicos de alfabetização de adultos.
Cerveja, vc é um analfabeto funcional. Domina o código, mas não apreende o conteúdo da mensagem.
Não fiz juízo de valor sobre o livro, e sim sobre a forma como o autor usa a técnica da qual falávamos. O livro não é a técnica. Essa é apenas e tão só um dos elementos dentro do livro.
Como sempre, vc torce a argumentação.
PS. Vc é incapaz de perpetrar obra dramática, porque isso pressupõe criatividade, e vc só tartamudeia conceitos preexistentes.
Vc é apenas um papagaiozinho erado, cara…
Confesso que esse culto ao James Joyce é para mim tão exótico quanto a adoração que os Maias professavam ao Deus-Sol, a quem ofereciam pingues sacrifícios de virgens brutalmente martirizadas. Concordo plenamente que o escritor irlandês revolucionou, com seu pastiche literário, a arte de escrever romances. Concordo que Joyce foi um gênio e que sua obra, especialmente o Ulisses, é uma das grandes realizações literárias do século passado. No entanto, sinto um tédio indescritível, um tédio imenso como o deserto, inescrutável como o segredo da Morte, quando imagino a hipótese de debruçar-me diante de Ulisses para resolver os intermináveis enigmas, jogos, trocadilhos que James plantou neste seu famoso livro. Devora-me, devora-me, irlandês insano, pois me recuso a decifrar-te!
Eu aprendi inglês a duras penas por duas razões: Shakespeare e Swift. A elas o tempo acrescentou mais algumas: o aristocrático Edward Gibbon, o inusitado Chaucer e o Satanás de Milton. Os prazeres que o texto de James Joyce oferecem não se me afiguram uma recompensa inesgotável. Se ele fosse a única razão do aprendizado do inglês, eu provavelmente seria um analfabeto funcional nessa era da Internet.
O inglês é fácil, é verdade, mas o latim também é fácil. Na minha concepção de Cultura, o latim, a língua franca dos sábios do ocidente durante séculos, está na frente; e, todavia, eu não desconfiaria da integridade intelectual de quem não consiga ler estes imortais e belíssimos versos de Horácio: Tu ne quaesieris (scire nefas) quem mihi, quem tibi / finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios / temptaris numeros. Vt melius quicquid erit pati!
A leitura de Montaigne ensinou-me há tempos o quão frívolos são os lustres de erudição. Cito Heráclito novamente: “A polimatia não ensina a ter compreensão.”
Embora não renda preitos à ignorância, não sou subserviente à acumulação gratuita de saberes.