Certos autores garantem-nos que, pouco antes da vitória do cristianismo, se ouvia, ao longo das margens do mar Egeu, uma voz que dizia: “O grande Pã morreu”.
Finara-se o antigo Deus universal da Natureza. Imaginava-se que, morta a Natureza, estaria morta a tentação. Durante tanto tempo perturbada pela tempestade, a alma humana ia enfim descansar.
Tratar-se-ia simplesmente do fim do antigo culto, da sua derrota, do eclipse das velhas fórmulas religiosas? De maneira alguma. Consultando os primeiros túmulos cristãos, vê-se a cada passo a esperança de que a natureza vá desaparecer, de que a vida se extinga, que, enfim, se chegue ao fim do mundo. Acabaram-se os deuses da vida, que durante tanto tempo prolongaram essa ilusão. Tudo cai, tudo se desmorona, se deteriora. O Tudo transforma-se em nada: “O grande Pã morreu!”
Assim começa “Sobre as feiticeiras” (Edições Afrodite, Lisboa, 1974, tradução de Manuel João Gomes), relato brilhante do historiador francês Jules Michelet (1798-1874) sobre a longa história cultural que foi dar na Inquisição. Não, não se trata de ficção. É História escrita com a verve narrativa e a parcialidade apaixonada que fizeram de Michelet, mais que um grande historiador, um baita escritor. Ele costumava dizer que sua disciplina, para ele, não fazia registro, mas “ressurreição”. Poucas épocas estiveram tão equipadas quanto a nossa para reconhecer que, pesquisa rigorosa à parte, “Sobre as feiticeiras” é um belo romance.
6 Comentários
Bela lembrança!
Putz, esse me pegou de surpresa. Já está devidamente anotado e entra na seleta lista das próximas aquisições. Aproveitando, maravilha a epígrafe da semana (ou quinzena?).
grande abraço, meu caro.
Além de tudo, Michelet foi uma grande influência para Nietzsche. Muitos especulam que esse trecho mesmo, por exemplo, deu ensejo ao “Deus é morto” do alemão, como uma espécie de atualização do que tinha acontecido alguns anos antes.
Jules Michelet é um daqueles autores que muitos já ouviram falar, mas poucos leram (me incluo nisso).
tive que ler no tempo de faculdade e posso acrescentar que o homem escrevia um tipo de História que muita gente acha ter sido inventado no sec.XX. ótimo trecho Sérgio.
É fora do tema, mas já que falamos de inícios inesquecíveis, proponho passar a um final inesquecível. Alguém por aí sabe por que o Rubem Fonseca saiu da Companhia?