Desocupado leitor: sem juramento meu embora, poderás acreditar que eu gostaria que este livro, como filho da razão, fosse o mais formoso, o mais primoroso e o mais judicioso e agudo que se pudesse imaginar. Mas não pude eu contravir a ordem da natureza, que nela cada coisa engendra seu semelhante. E, assim, o que poderá engendrar o estéril e mal cultivado engenho meu, senão a história de um filho seco, murcho, antojadiço e cheio de pensamentos díspares e nunca imaginados por ninguém mais, exatamente como quem foi engendrado num cárcere, onde toda a incomodidade tem assento e onde todo o triste barulho faz sua habitação?
Assim começa o romance “O engenhoso fidalgo D. Quixote de la Mancha”, ou simplesmente “D. Quixote”, lançado em duas partes, a primeira delas em 1605, pelo espanhol Miguel de Cervantes (Record, 2005, tradução de Carlos Nougué e José Luis Sánchez). Assim começa o romance.
12 Comentários
Há uns dois anos atrás descobri num sebo lá em São João del
Rei, o livro Dom Quixote editado pela Abril Cultural em sua coleção Clássicos da Literatura Juvenil (1972) – época que ainda nos encontrávamos, com frequência, na inesquecível rua Itamury.
Trouxe o livro, feliz da vida pelas lembranças que evocava e talvez por poder contá-las pra moçada, aqui em casa.
A turma adorou! E acabei por ler o livro, outra vez. Porém me veio a vontade de ler o Dom Quixote pra ‘gente grande’ mas que tivesse o tempero da época em que foi escrito.
Por isso, seu todoprosa, com estes ‘começos inesquecíveis’
agradeço-lhe a dica.
Aquele abraço!
Pena que o Carlos Dutra não tenha percebido – ou tenha esquecido de comentar – que essa edição da Abril é cheia de erros e empastelamentos, um verdadeitro crime contra tamanha obra-prima.
A visão que fica deste livro é que o verdadeiro herói, Sancho Pança, acompanha o seu chefe sonhador apesar de ter a consciência da loucura da empreitada. Um exemplo de servidão consciente. Verdadeiro herói, Sancho Pança.
Segundo lugar só para Cervantes, em língua espanhola, no número de leitores que teve, morreu na semana passada na Espanha a escritora Corin Tellado, aos 81 anos. Ela escreveu e publicou mais de 4 mil volumes de ficção e dois dias antes de morrer terminou seu último livro..
Pedro Curiango,
É isto mesmo? 4 mil livros? em 80 anos de vida dá uma média de cinquenta livros por ano, ou um livro a cada 7,3 dias desde o berço até o túmulo.
Não deixa de ser um feito.
rapaz, essa mulher que o pedro citou nem viveu!!
só fez escrever e escrever escrever e escrever e escrever…
deve estar escrevendo até dentro do caixão. uma brás cubas fêmea.
prefiro o cervantes.
Quase-xará,
Esta imagem do Sancho Pança, do homem simplório que enxerga a realidade tal como ela é, um contraponto ao idealista cego que é o D. Quixote, deriva dos primeiros episódios do livro, em especial, da célebre aventura dos Moinhos de Vento. Mas ao longo da história, esta imagem vai se nuançando até se borrar completamente: na Segunda Parte do livro, no episódio do Clavilenho, é Sancho quem se entrega às ilusões, mais até do que seu próprio amo, que chega a dizer: “o Sancho miente o Sancho sueña”.
Depois, não creio que a imagem da servidão voluntária seja adequada: Sancho, desde o início, segue D. Quixote por interesse, pois ele realmente acredita que, mais dia menos dia, receberá por paga uma ilha para governar, e é movido por esta ilusão (palavra inevitável) que se torna o mais célebre escudeiro da literatura.
Só espero que ninguém aqui diga que Cervantes prefigurou a internet ou o hipertexto.
Vale
Ei, não querendo ser muito chato, mas sendo, eu usaria “Assim começa o romance” para o início do Conto de Genji da Murasaki Shikibu.
Talvez o fabuloso início de Quixote sirva para “Assim começa o romance moderno” ou “Assim começa o romance no ocidente”, sei lá…
Xxnsky, sei que os tempos PC gostam muito dessa teoria do Conto de Genji, mas, na mesma linha, por que não O asno de ouro de Apuleio? Prefiro ficar com o Quixote, mesmo porque considero “romance moderno” um pleonasmo. Um abraço.
É isso aí, Sérgio:
Multiculturalismo sucks!
O estilo medieval ,da introdução,lembrou-me alguns profissionais das letras, de textos rasos,que frequentam habitualmente as páginas dos periódicos. Tratam dos comezinhos eventos rotineiros,abordam com gongorismo assuntos pertinente à república, referem -se as autoridades jocosamente,fazem da gravidade da hora,irreverência. “En un lugar de la Mancha,de cuyo nombre noquiero acordarme…” Os amanuenses,são de memória seletiva,lembram o que lhes convém ou o que melhor lhes paga.
Esse é o cara: o maior de todos, o melhor de todos.