Em fevereiro de 1948, o dirigente comunista Klement Gottwald postou-se na sacada de um palácio barroco de Praga para discursar longamente para centenas de milhares de cidadãos concentrados na praça da Cidade Velha. Foi um grande marco na história da Boêmia. Um momento fatídico que ocorre uma ou duas vezes por milênio.
Gottwald estava cercado por seus camaradas, e a seu lado, bem perto, encontrava-se Clementis. Nevava, fazia frio e Gottwald estava com a cabeça descoberta. Clementis, muito solícito, tirou seu gorro de pele e o colocou na cabeça de Gottwald.
O departamento de propaganda reproduziu centenas de milhares de exemplares da fotografia da sacada de onde Gottwald, com o gorro de pele e cercado por seus camaradas, falou ao povo. Foi nessa sacada que começou a história da Boêmia comunista. Todas as crianças conheciam essa fotografia por a terem visto em cartazes, em livros ou nos museus.
Quatro anos mais tarde, Clementis foi acusado de traição e enforcado. O departamento de propaganda imediatamente fez com que ele desaparecesse da História e, claro, de todas as fotografias. Desde então Gottwald está sozinho na sacada. No lugar em que estava Clementis, não há mais nada a não ser a parede vazia do palácio. De Clementis, só restou o gorro de pele na cabeça de Gottwald.
Assim começa “O livro do riso e do esquecimento” (Companhia de Bolso, 2008, tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca), lançado em 1978 pelo tcheco Milan Kundera, que comecei a ler há poucos dias – seguindo uma dica de Philip Roth em “Entre nós”, comentado aqui no fim do ano passado – e não entendo como pode ter me escapado até hoje. O esquecimento é provocado, o riso é amargo e o livro é imperdível.
14 Comentários
Até hoje só li de Milan Kundera “A insustentável leveza do ser” também influenciada por uma amiga, o marido dela que é fã tem uma série de livros deste autor; levando em conta o único livro que li, tenho certeza de que este mencionado por você também deva ser um ótimo livro. Já está na estante das leituras futuras.
Abraço,
Rose
sérgio, eu nunca li nada do kundera. além desse você indicaria mais algum? tirando o que a rosimeri já citou?
abraço.
Oi,Sérgio
O início é bem explícito na crítica que se fará ao comunismo; curioso para nós, da língua portuguesa, é que nosso principal autor internacional, José Saramago, seja um comunista convicto e declarado. Como o prosador português responderia a essas denúncias do seu sistema predildeto?
PS: Pensava que A viagem do elefante seria o um canto de cisne de Saramago, mas me contaram que, no blog dele, já há informações sobre um novo livro sendo preparado; enfim: uma ótima notícia.
vi a foto do kundera, e, de cara, o início citado me lançou àqueles anos em que eu devorava diversos kunderas, apresentado a mim por uma namorada. devo ter lido todos que me caíram à mão. apesar de tantos criticarem certas facilidades e certos esquematismos do tcheco, seus livros são quase tão bons quanto seus títulos. riso e esquecimento é apenas um: a valsa dos adeuses, a vida está lá fora, entre outros títulos que evocam uma mágica prévia.
sou um crítico do comunismo também, mas, kylderi, deixa o saramago quieto: ele está naquela idade em que o ser se cristaliza, e aos mais jovens resta admirar o que eles têm de admirável.
Prezado Sérgio,
Não sou o Philip Roth mas permita-me dar-lhe uma dica? Leia um dia A imortalidade. Em minha modesta, mas nem sempre equivocada, opinião é o MELHOR livro do Kundera. Melhor ainda do que A insustentável leveza do ser (que não é ruim mas deve muito da sua fama e leitores ao filme).
Estou em débito com Millan… já me recomendaram uns livros dele e eu não os procurei, e nem lembro o motivo.
Mas está na hora de quitar a dívida com o autor e comigo mesmo. E o melhor de tudo, Companhia de Bolso é sinônimo de livro barato… Nada contra pagar por um livro, mas pagar por um livro mais barato e bom é tão, como posso dizer, BOM.
Dica a notada, vou conferir.
Valeu Sérgio e a todos que me fizeram o favor de postar outros trabalhos do autor.
Esse começo me deixa com sensação de que se parece com outro…
Para quem se interessou pela história relatada por Kundera no início do livro, as fotografias (versão oficial e versão montagem) estão aqui: http://flickr.com/photos/12252125@N06/2412051997
Estou lendo “A insustentável leveza do ser”, ganhei de aniversário.
O filme já me foi recomendado, e babado e exaltado…resolvi ler antes o livro só para depois dizer ‘o filme não chega aos pés do livro’, ou não.
Kundera? Li praticamente tudo, romances e contos. Gostei tanto que acabei por citá-lo num poema de minha autoria, Agradecimento:
Pelo carinho e pelo vinho
Pela ternura silvos e juras
Pelo Camões aos refrões!
Pelos sussurros aos urros
Pelo Kundera tb pudera!
Pela vida (sic) pela morte
Pela ereção sob o calção
(Minha gratidão inscrita no
Muro e na palma da mão)
(A. Zarfeg)
Já li há algum tempo A Insustentável Levesa do Ser e agora estou lendo Risíveis Amores.
Li Kunderas aos montes nos anos 80. Escritorzaço, digno de um Nobel…
Para mim, “O livro do riso e do esquecimento é um dos melhores do Kundera”, porque é o que nos leva a conhecer mais o autor e suas preferências artísticas (música, por exemplo). Li no final dos anos 80 e provavelmente é o livro do qual guardo o maior número de passagens em minha memória. Me lembro que na época, enquando “A Insustentável leveza do ser” e “Risiveis Amores” recebiam muitos elogios, escreviam-se péssimas críticas sobre “O Livro do riso e do Esquecimento”. Mas, eu, fã ardorosa de Kundera comprei-o logo e amei. O crítico (especialmente o da Veja) deve ter lido de má vontande, porque o livro aborda assuntos muito variados. Ah, e não tormou nem a mim nem meus amigos que leram menos comunistas, nem menos leitores de Saramago…fiquem tranquilos.
Estou lendo A Imortalidade e depois lerei O livro do riso e do esquecimento. Descobri essas duas obras recentemente. Risíveis Amores já li e também é maravilhoso