O vidro martelado da porta tem um letreiro em tinta preta trincada: “Philip Marlowe…. Investigações”. É uma porta razoavelmente decadente no fim de um corredor razoavelmente decadente, num edificio do tipo que era novo ali pelo ano em que o banheiro com azulejo até o teto se tornou a base da civilização. A porta fica trancada, mas ao lado dela há uma outra, com letreiro igual, que não fica. Pode entrar – não há ninguém aqui além de mim e de uma enorme mosca varejeira. Mas não se você for de Manhattan, Kansas.
O início de “A irmãzinha” (The little sister, The Library of America, tradução caseira), de Raymond Chandler, o grande estilista da literatura policial americana hard boiled, já devia ser inesquecível quando foi publicado pela primeira vez, em 1949. Ainda mais inesquecível se tornou, porém, depois que milhares de escritores mundo afora fizeram questão de lembrá-lo, lembrá-lo e lembrá-lo de novo, numa avalanche de imitações, sátiras, pastiches, glosas e homenagens que encheriam bibliotecas. Um processo de lugar-comunização tão avassalador que, a esta altura, estará desculpado quem preferir esquecer o inesquecível. É estranho pensar que nunca mais será possível ler esse parágrafo sem ouvir os ecos de suas palavras ricocheteando entre as estantes infinitas.
14 Comentários
O que eu gosto no Chandler é esse seu humor que se entrevê às vezes, essa ironia curta e grossa.
Sérgio, confesso minha culpa: também me somei ao eco, num conto chamado “Safári”, que saiu no jornal eletrônico NÃO. Ve aí:
Na vidraça à prova de balas da porta, lia-se, em letras pretas: Félix Ferreira — Safáris. Era uma porta relativamente gasta, ao fundo de um corredor também relativamente gasto, num edifício que fora novo no ano da primeira colônia em Marte. A porta estava fechada com um dispositivo eletrônico, mas ao lado, com a mesma inscrição, havia outra, aberta, que dava para uma cabina de identificação.
Pela janela, eu podia ver o Cristo Redentor, sem um braço e sem a cabeça, entre as nuvens de gases tóxicos. Há cinco anos estava assim, detonado numa guerra de traficantes. Era um fim de tarde e o verão rugia com o trânsito nas ruas, quarenta andares abaixo.
Chandler tem uma ironia que encontro também nos livros de Rex Stout. Ambos incríveis.
Oi! Lembro que você comentou sobre o começo de Moby Dick, o famoso “Call me Ishmael”. Agora uma nova tradução saiu, gostaria de saber a sua opinião!
Leia um trecho aqui: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u395648.shtml
Ironia, taí um recurso muito interessante e que poucos sabem usar e que menos ainda são os que apreciam ou entendem…
Bela dica.
Então aí está a primeira “placa-na-porta-com-nome-de-detetive” da literatura? Que beleza…
Legal, Ernani. Eu devia ter imaginado que, como bom chandleriano, você estaria no time. Também tenho uns ecos aqui na gaveta, todos inéditos. Mas depois do escracho do Ed Mort, confesso que perdi um pouco o pique.
Pedro, como comentei dia desses com o Felipe, acho a solução “Trate-me por…” muito boa. Já a decisão de manter a grafia Ishmael, em vez de Ismael, me parece menos feliz.
Abraços a todos.
Viva Chandler!!!
Viva Chandler!!! [2]
Que coincidência eu dar de cara com esse post! Nos últimos dias ando passando um planejado “pente fino” nos filmes do período noir (Pacto de Sangue, Crepúsculo dos Deuses, Relíquia Macabra, Marca da Maldade…)
Essas produções devem muito à literatura de figuras como Chandler, Dashiell Hammett…
Este processo de lugar-comunização pode inclusive gerar algumas decepções.
Saindo da literatura, mas ainda no contexto, a 1a vez que ouvi Hendrix foi uma decepção. Não consegui identificar o “grande inovador da guitarra” no que ouvia, simplesmente porque os seus melhores truques e maneirismos já haviam sido devidamente assimildos e diluídos por uma série de guitarristas que eu, por acaso, conheci primeiro.
No caso de Chandler, por exemplo, embora goste de seus romances, não consigo deixar de ouvir uma vozinha dizendo “Meu nome é Mort, Ed Mort …”
O estilo do Chandler é tão forte que fez a cabeça de gerações de candidatos a escritores e mesmo de escritores consagrados.
O Veríssimo que o diga, cronista brilhante — pois que a crônica (principalmente aquela de cunho humorístico) aceita e suporta o pastiche —e romancista menos que mediano.
Mas esse estilo ai, de tão imitado, já tá dando no saco…
E tem mais, imitar isso, principalmente tendo os livros do Chandler à mão, é facílimo. Mas quero ver a história, a psicologia dos personagens… ai é que tá o busílis.
Dizem que Raymond Chandler é incrível, mas nunca tive oportunidade de ler nada dele, mas pretendo em breve..
Li Procura-se uma Vítima, livro do Ross MacDonald, que é considerado um sucessor dele, e gostei bastante.
Parabéns pelo site..
Estou colocando um link e um banner seu no meu blog, que é sobre romances policiais. O endereço é:
http://romancespoliciais.blogspot.com
Se tiver algum problema é só falar que eu retiro. Ok ?
Abraços
Thiago, obrigado pelo link. E se você gosta de romance policial não deixe de ler o Chandler, o cara é um monstro. Um abraço,
Sérgio