Pouco depois da morte de Mãe, a Brepe deu para pular dentro do sono de Carmona. Fitava o homem enquanto ele se despia e, quando ele apagava a luz, arqueava as costas e ia se erguendo nas patas, pronta para caçar o sonho de Carmona e depená-lo assim que levantasse vôo. Mas os sonhos de Carmona não eram pássaros, e sim gatos: ásperas trevas de gatos, línguas de gato movendo-se entre tições de negra luz.
O homem dormia de boca aberta e, quando ele adentrava o cone de escuridão onde pairavam os sonhos, uma manada de gatos saía de sua boca rasgada por berros de cio e mergulhava no rio dos engenhos de açúcar.
É a primeira vez que promovo aqui o cruzamento das duas seções citadas no título acima, mas tenho um bom motivo. Normalmente, a eleição de um Começo inesquecível exige um tempo de maturação de leitura que é, por definição, incompatível com o espírito apressadinho abrigado sob a rubrica Primeira mão. Certo, mas as frases iniciais da recém-lançada edição brasileira de “A mão do amo” (Companhia das Letras, tradução de Sérgio Molina e Lucas Itacarambi, 168 páginas, R$ 36), romance publicado em 1991 pelo argentino Tomás Eloy Martínez, me agarraram pelo pescoço de tal forma que fico tentado a chamá-las aqui, meio pomposamente, de melhor tradução literária da sintaxe onírica que já li. Sempre gostei de ler – e de escrever – sobre sonhos, esses vizinhos ariscos da ficção, que parecem nunca estar em casa quando tocamos a campainha. Por alguma razão, a beleza feroz de “línguas de gato movendo-se entre tições de negra luz” me parece insuperável.
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Outro começo inesquecível:
“When a day that you happen to know is Wednesday starts off sounding like Sunday, there is something seriously wrong somewhere.”
(The day of the triffids, John Wyndham)
Gostei muito também do “adentrava o cone de escuridão onde pairavam os sonhos”. Vou ter que evitar o TP para o bem do meu bolso.
Sergio, terminei um livro do Martínez domingo (O Vôo da Rainha), e mesmo ainda sem conseguir definir se gosto ou não do estilo do cara, devo admitir que ele tem uma certa pegada. Parece que esse ai tem força, levando-se em conta esse começo destacado por ti.
De qualquer forma, pelo relativamente pouco que conheço, acho que a literatura argentina atual está melhor que a brasileira, que anda muito cheia de “garotos prodígios”, gente sem substância, sem experiência de vida, que se põe a escrever.
A frase é boa mesmo, Sérgio. Certos livros não foram escritos para serem lidos, e sim degustados. Esse trecho parece prenúncio de um livro dessa categoria. Vamos conferir. Uma pergunta: sendo um leitor dos mais interessados e cuidadosos, o que você achou das teorias do professor Bayard em seu Como falar dos livros que não lemos?
Claudio: não li o livro do Bayard, mas vou seguir o conselho dele e comentá-lo assim mesmo. Pelo que andei lendo a respeito, é uma provocação, pouco mais que uma boutade espichada, mas feita com inteligência. Espero encará-lo em breve.