Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado. Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. Pergunte aos índios. Qualquer coisa. O que primeiro lhe passar pela cabeça. E amanhã, ao acordar, faça de novo a mesma pergunta. E depois de amanhã, mais uma vez. Sempre a mesma pergunta. E a cada dia receberá uma resposta diferente. A verdade está perdida entre todas as contradições e disparates. Quando vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja pela suposição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade. Virá escorado em fatos que até então terão lhe parecido incontestáveis. Que o antropólogo americano Buell Quain, meu amigo, morreu na noite de 2 de agosto de 1939, aos vinte e sete anos. Que se matou sem explicações aparentes, num ato intempestivo e de uma violência assustadora. Que se maltratou, a despeito das súplicas dos dois índios que o acompanhavam na sua última jornada de volta da aldeia para Carolina e que fugiram apavorados diante do horror e do sangue. Que se cortou e se enforcou. Que deixou cartas impressionantes mas que nada explicam. Que foi chamado de infeliz e tresloucado em relatos que eu mesmo tive a infelicidade de ajudar a redigir para evitar o inquérito. Passei anos à sua espera, seja você quem for, contando apenas com o que eu sabia e mais ninguém, mas já não posso contar com a sorte e deixar desaparecer comigo o que confiei à memória. Também não posso confiar a mãos alheias o que lhe pertence e durante todos estes anos de tristezas e desilusões guardei a sete chaves, à sua espera. Me perdoe. Não posso me arriscar. Já não estou em condições ou idade de desafiar a morte. Amanhã pego a balsa de volta para Carolina. Mas antes deixo este testamento para quando você vier e deparar com a incerteza mais absoluta.
Seja bem-vindo.
O começo já anuncia a força do romance “Nove noites” (Companhia das Letras, 2002), vencedor do prêmio Portugal Telecom de 2003, o melhor livro do carioca Bernardo Carvalho.
32 Comentários
Do Bernardo só li Nove Noites e Mongólia. Gostei dos dois, mas, por algum motivo, ao folhear os primeiros dele nas livrarias, fico achando que vou gostar mais deles. Estou com Os Bêbados e os Sonâmbulos em casa, para ler em breve. Vamos ver.
Ei, quem leu (Sérgio, inclusive) faça recomendações sobre o Mongólia! imitação de Paul auster ou o lance é bom mesmo.
Se for “assombroso” compro amanhã mesmo, há muiuto tempo esse livro tá na minha lista mas eu nunca boto fé.
Acho que comecei errado com o Bernardo. Li o “Onze” e achei chatinho, esquemático, carregado de vícios da “vanguarda”.
Farei nova tentativa. Mas juro que fiquei assustado com o chavão “todos estes anos de tristezas e desilusões guardei a sete chaves…”. Credo!
Daniel, meu caro: acho que vale dar outra chance ao autor. E que olho de lince pro lugar-comum, hein? (O desta frase, alguém vai descobrir?)
Fábio: o Mongólia não é mau mas me parece, como direi, meio artificioso, contorcido demais. Nove noites pega mais na veia.
Abraços.
mas eu acredito que o tal lugar-comum apontado não é nada demais, uma vez que faz parte de uma carta, escrita por um personagem… quem leu entende.
Não li Mongólia, mas dos anteriores a Nove Noites, que para mim são todos inferiores, prefiro Teatro, ali percebo o início do refinamento da linguagem, a melhor construção narrativa… Os Bêbados e os Sonâmbulos não deixa de ser uma boa leitura.
Mandei um comentário e não saiu.
Estou assombrada também.
Meus “olhos de lince” querem ler com calma. rsrs
A academia adora o Bernardo Carvalho. E, dele, cultuam sobretudo “Nove noites” – não se passa um semestre sem que eu tenha de ouvir algum professor mencionando o livro.
Li todos os livros dele até “As iniciais” (o meu preferido). Quando ele começou a ser muito citado pelos corredores e salas da Uerj, me enfadei. Não comprei nem li “Mongólia”, “Nove noites” e o resto. Acho que gosto de estar na contramão.
BC não é um mau escritor, pelo contrário, mas desconfio que quando dizem que ele “escreve pra academia”, há certa razão nisso. Percebo um nítido projeto de “jogar pra arquibancada acadêmica” em muitas das coisas que ele escreve.
O que me ficou da leitura dos livros todos dele até “As iniciais” foi a descoberta de que ele não sabia escrever um romance linear, clássico, com começo meio e fim. Se vocês observarem, os romances dele até “As iniciais” são novelas e contos interligados – não que haja algo de ruim nisso, de jeito nenhum. Eu até gosto dessa estrutura que na verdade junta tudo (romance, novela e conto) numa obra só.
Li todos os livros de Bernardo Carvalho, inclusive o primeiro, a coletânea de contos “Aberração”, excelente. Meu predileto, que considero assombroso, é o romance “Teatro”.
Só li “Mongólia” e detestei. Pela primeirra vez na vida – e espero que pela última – me vi “corrigindo” o texto do cara. E não era erro desses de “gramática”, como ocorre com Paulo Coelho… Mas torço para estar errado em meu juízo, claro. Mas também não agüento as colunas dele na Ilustrada.
Vivendo e aprendendo. Nunca podia imaginar que alguém pudesse escrever assim. “-Não esta frase “eles” não vão gostar. Ih! Este tema é proibido, droga, vou ter de cortar o capítulo inteiro.”
Deve ser por isso que o romance não é linear.
Mas gosto da falta de linearidade.
Quando leio lineares geralmente não leio cápítulo por capítulo. Pulo, me interesso por um asunto, depois outro personagem… Sempre li assim.
Saint-Clair,
Vou te mandar um e-mail para trocar figurinha sobre a UERJ.
Cuidado para não se perder naquelas escadas, rampas, corredores… .
Prefiro “dar outra chance” pra Flannery O’Connor, que me decepcionou, hóóóóóóó-rrores, com seu livro “Sangue sábio”, do que dar uma primeira chance pro Bernardo de Carvalho, que consegue reunir um número grande de detratores para cada um de seu livros, mas nem um resquício de unanimidade sobre qual livro seu é bom.
E lembraram bem: a coluna dele, na Folha, é ilegível.
Sabe quando alguém vem EXPLICAR o que ninguém acha que é um problema?
O conto “É Difícil Encontrar Um HomemBom” da Flannery O’Connor é uma obra-prima.
Mas isto deve ter pouco valor vindo de quem gosta muito das colunas do Bernardo Carvalho e vê bastante sentido, o suficiente, acredito.
Eu li Nove Noites e Mongólia. O primeiro é razoável, o segundo medíocre. O tema de Nove Noites, pra quem não leu ou leu e não entendeu, é o…Não vou estragar a surpresa…
Fabio Negro, todo “É difícil encontrar um homem bom”, publicado no Brasil pela Arx, é maravilhoso – e bem melhor que o “Sangue sábio”, que também me decepcionou. O conto-título, como notou o marcusmartins, é realmente espetacular. Má notícia: a tradução é péssima. Se souber inglês, sugiro que pule direto pro “A good man is hard to find”.
Essa teoria de que ao personagem é permitido cometer chavões é uma armadilha perigosa, Marcus. Primeiro, porque isenta o escritor de ser mais exigente com sua escrita.
Segundo, porque a boa literatura é feita de personagens interessantes. Ora, se um personagem inicia seu discurso com lugares-comuns, já se torna mais banal, menos interessante…
Mas vou ler, claro. O início do romance é promissor E ninguém é perfeito, como disse Joe E. Brown naquele célebre final hollywoodiano.
Quem nunca escorregou num chavão, que “atire a primeira pedra”…
Em geral, falta à literatura a porção necessária de vida. Isto é muiito claro nas escolhas deste blog, que privilegia os subscritos do óbvio. Falta viver, ir aos lugares, largar os livros e tomar, da vida e não do já .escrito, o material para a arte..
“Mongólia” é bem frustrante. Ainda bem que li a tempo de trocar por outra coisa na livraria.
Discordo do Daniel Brazil. Um personagem não se faz mais ou menos interessante pela sua capacidade de articular palavras ou fugir de chavões. Seguindo essa lógica, a “boa literatura” só permitiria personagens cultos, com alto grau de elaboração linguística. Isso significaria ignorar tipo memoráveis como o Fabiano, de Vidas Secas, ou os fabulosos sulistas do William Faulkner.
Concordo que não dá pra ler o que ele escreve na Folha. Chaaaaaato. Mas o cara é bom escritor. Nove Noites é ótimo. Gostei também de As Iniciais. E gostei muito de Mongólia, até perceber que ele usa a mesma estrutura narrativa de Nove Noites pra contar a história. Digamos que Mongólia é um Nove Noites na Ásia.
Não é esta a “lógica”, Roberto R. Há personagens “cultos” e cheios de chavões, até em Machado de Assis. Geralmente isso é posto de forma irônica ou crítica.
E há personagens literalmente analfabetos, mas cheios de originalidade. Fabiano não se manifesta por lugares-comuns. Nem Riobaldo, Gabriela ou o Sargento Getúlio.
O problema está na confusão entre a narrativa em primeira pessoa e a voz do autor. Se o escritor vacila, os chavões serão creditados a ele…
Daniel, não discordo do que você fala, mas não acredito que isto se aplique ao caso, além de não ver nenhum problema no uso de chavões, acredito que ali, o chavão foi até bem utilizado, justamente pelas próprias características de quem escreve a carta.
Ah, o Fábio Negro deixa de ler alguém por que ele reune detratores? Como assim? Você consegue ler algum livro seguindo tal mirabolante fórmula? Me aponte um, unzinho, de qualquer clássico que não tenha sido apedrejado, a maior parte dos escritores que conheço tem detratores para cada uma de suas obras, e daí? Isso realmente que dizer alguma coisa? Não entendi.
Existe uma obra do grande Georges Perec que foi escrita apenas com o uso de frases comuns, as mais repetidas na língua francesa, deve ser uma beleza.
e se eu fosse perder meu tempo com tal besteira, encontraria, sem a menor dúvida, chavões nos escritos de cada escritor aqui citados. E isto não diz muito sobre eles. Nem acho que o BC seja assombroso, por exemplo, o destaque dele vai mais pela mediocridade do restante, entre Aquinos, Galeras, Hatuoms e companhia bela, prefiro a vontade dele em fugir de certos estereótipos e afiliações tão caras aos gênios brasileiros comtemporâneos.
Belo início sim, mas quando se diz início, penso na primeira frase, aquela que pega o leitor pelo cangote e diz: ferrou-se, cara, não vai conseguir me largar mais…
A primeira frase do Nove noites não tem esse poder, mas a coisa deslancha e melhora.
Nove noites é um belo livro, sim… Consideo Mongólia apenas um razoável texto, e realmente segue um pouco demais a “fórmula” do Nove noites, o que me faz aguardar com certa ansiedade pelo próximo trabalho. Será que Carvalho vai conseguir sair da “fórmula”, ou seja, da armadilha de estilo que ele mesmo se impôs?
As iniciais é um livro muito meia boca…li assim que foi lançado e, confesso, não me lembro de nada, nem sei qual o tema do livro. Isso depõe contra minha memória, admito, mas também diz um bocado da qualidade do texto, afinal, nem conseguiu se impor na memória do leitor (eu).
Aberração é de uma pretensão meio descabida.
Não li Teatro, e já ouvi elogios… está na minha lista, portanto.
Quanto à coluna na Folha, tem dias que ele aborda temas interessantes, tem dias que não… jornalismo tem disso.
Ótimo início, Sérgio. Eu mesmo mandei essa sugestão de começo inesquecível para você já há um tempo.
Confesso que o livro, apesar de bom, não honra esse início tão promissor e poderoso. A narrativa propositadamente desencontrada chega a nausear em certos momentos, mas demonstra ótimo domínio do BC.
Lá pelas tantas, há uma quebra da tensão, com umas ótimas e hilariantes passagens com um quê de politicamente incorreto, que para mim valeram o livro.
verdade seja dita, as iniciais é um livro de escritor ‘inicial’ – bem fraquinho e maneirista.
Marcus Martins, que Deus tenha lhe dado tanto talento para criar quanto imbecilidade para pensar…
tanto que eu não escreva um blog como o seu vinícius, já estou bem grato.
Poxa, perdi a polêmica do “Nove Noites”, do BC. Já faz um mês do último comentário. Hélas.
Quando gosto de um livro, e gosto não se discute, começo a lê-lo pelas beiradas, como se come angu, para adquirir melhor sabor. Depois, come-se vorazmente, várias, infinitas vezes, até que os sabores se dissipem, mantendo-lhes sua essência.
É assim com este livro. Quando dá vontade de repetir o sabor, é só relê-lo quantas vezes quiser.
Assim foi com Nove Noites. Aliás, já estou como fome novamente de angu.
Mongólia reacendeu o gostinho do angu.
Mas vai comer angu na Sibéria, é impossível. Sinto que houve outra comida parecida de que se serviu o autor-leitor para que a essência não se dissipasse.
Não sou das letras, nem acad^emica, muito menos cr’itica.
Nove noites ‘e um puta livro, uma puta obra, um puta angu.
E de Domingos Pellegrini, ningu’em fala nada? Totalmente diferente de BC na narrativa, tamb’em se come como angu.
A Ultima Viagem, conto do livro Tempo de Guerra, de 1999, tem um sabor de angu fub’a puro, mas tamb’em delicioso.
Em tempo: sou carioca e odiava angu. Hoje adoro. H’a gosto para tudo.
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