Voltava finalmente depois de uma ausência de duas semanas. Os nossos estavam havia já três dias em Rulettenburgo. Pensava que eles, Deus sabe como, me estariam esperando, mas enganava-me. O general parecia o supra-sumo da indiferença; falou-me com altivez e enviou-me à sua irmã. Saltava aos olhos que, fosse como fosse, haviam arranjado dinheiro. A mim me pareceu também que o general se esforçava muito por não me olhar. Mária Filipóvna estava muito atarefada e falou-me muito à pressa; aceitou, não obstante, o dinheiro, contou-o e escutou meu relato até o fim. À hora da refeição esperavam Miezientsov, um francês e também certo inglês; assim costumavam fazer enquanto tinham dinheiro: em seguida davam jantares à moscovita. Polina Alieksándrovna, ao ver-me, perguntou: “Vai estar ali muito tempo?” E sem esperar resposta, foi-se para não sei onde. Naturalmente, fez aquilo de propósito. Precisávamos, não obstante, ter uma explicação. Haviam-se juntado muitas coisas.
Muitas coisas, realmente. Coisas demais? O início de “O jogador” (Obra completa, volume III, tradução de Oscar Mendes, Nova Aguilar, 1995), novela escrita por Dostoiévski em apenas três semanas em 1866, a fim de pagar uma dívida com seu editor, leva ao limite do pandemônio a máxima de que os livros devem começar com a história em andamento. “Comece pelo meio”, diz um conselho mais ou menos consagrado do manual do ficcionista. Faz sentido, claro, mas será que existe um limite para isso, além do qual a curiosidade do leitor pode virar enfado e exasperação? No caso de “O jogador”, é bom deixar claro que não vira. Mesmo assim cabe outra dúvida: o grande escritor russo estava conscientemente empurrando aquela linha divisória ou apenas sucumbindo ao tumulto de um livro escrito em cima das coxas – no caso, as da jovem estenógrafa Anna Grigórievna Snítkina, a quem ele ditou o texto e com quem se casou logo depois?
9 Comentários
O que eu acho interessante no caso de “O jogador” é que ele quebra o mito de que uma obra-prima precisa ser longamente gestada, longamente construída. Escrever um texto bom – excelente, no caso do russo – não significa levar vinte anos para escrevê-lo.
Bom comentário, aí acima, sobre o tempo de gestação de uma obra. Só que não dá para saber quanto essa foi gestada. Pode haver diferenças entre gestação e revisão, reescrita etc. Sem ter certeza nenhuma, no entanto, arrisco a dizer que se trata de um desses casos em que um fulano (ou uma fulana) demora 20 anos para ficar famoso da noite para o dia…
A melhor frase sobre o jogo ( o vício do mesmo ) está nesse livro : ” a vida em um dia ”
A mudança da pobreza para riqueza, da infelicidade para a felicidade, da vida apertada para uma vida esplendorosa – está na bolinha que gira ao contrário da roleta….o coração salta do peito, é agora….ela tem que cair no vermelho..
enfim, a vida em um dia…
abs,
ma
O começo d’O Jogador realmente é muito bom. Mas, sem querer ser chato e já sendo, ainda prefiro o do Notas do Subterrâneo.
O bom e (muito) velho in media res.
Na verdade, Dostoiévski, é genial. Para escritores assim, não importam certos conceitos; de qualquer forma serão bons e pronto. Isso não serve para qualquer um. É o mérito da genialidade.
“Em cima das coxas”? Que gíria é essa, porra?
O certo é “NAS COXAS”, cacete!
Nem as gírias anciãs e mainstrem escapam mais…
É isso, Santinha:
O escritor genial não precisa enquadrar-se em fórmulas pré-fabricadas. Ele, no ato mesmo de compor seu texto, vai criando junto a fórmula.
Dostoieviski escreveu a citada obra para pagar uma dívida. Escreveu, assim, no desespero e seria uma obra fadada ao fracasso. Mas até no desespero os gênios conseguem um certo equilibrio e, assim, ganhamos mais um livro para ser lido a partir do começo, meio ou fim.