Sou o médico de quem às vezes se fala neste romance com palavras pouco lisonjeiras. Quem entende de psicanálise sabe como interpretar a antipatia que o paciente me dedica.
Não me ocuparei de psicanálise porque já se fala dela o suficiente neste livro. Devo escusar-me por haver induzido meu paciente a escrever sua autobiografia; os estudiosos de psicanálise torcerão o nariz a tamanha novidade. Mas ele era velho, e eu supunha que com tal evocação o seu passado reflorisse e que a autobiografia se mostrasse um bom prelúdio ao tratamento. Até hoje a idéia me parece boa, pois forneceu-me resultados inesperados, os quais teriam sido ainda melhores se o paciente, no momento crítico, não se tivesse subtraído à cura, furtando-me assim os frutos da longa e paciente análise destas memórias.
Publico-as por vingança e espero que o autor se aborreça. Seja dito, porém, que estou pronto a dividir com ele os direitos autorais desta publicação, desde que ele reinicie o tratamento. Parecia tão curioso de si mesmo! Se soubesse quantas surpresas poderiam resultar do comentário de todas as verdades e mentiras que ele aqui acumulou!…
O pequeno prefácio que abre “A consciência de Zeno” (Nova Fronteira, tradução de Ivo Barroso), obra-prima de humor e desencanto publicada em 1923 pelo italiano Italo Svevo, introduz por breves momentos a voz – pouco confiável, como logo se descobre – do psicanalista, Doutor S., que induz o personagem Zeno Cosini a contar sua vida no livro que vem em seguida. Momento histórico: até que alguém prove o contrário, trata-se da primeira vez que a psicanálise ocupa lugar tão destacado na ficção. Um começo promissor, mas, no caso de “A consciência de Zeno”, quase lamento que esta seção não se chame “Finais inesquecíveis”:
Haverá uma explosão enorme que ninguém ouvirá, e a Terra, retornando à sua forma original de nebulosa, errará pelos céus, livre dos parasitos e das enfermidades.
18 Comentários
Não li o livro, mas achei esses tres parágrafos iniciais (do prefácio) chatos e completamente olvidáveis. Se eu os tivesse lido numa livraria, considerando uma eventual compra, ato contínuo, teria desistido. É até possível que se eu vivesse em 1930, poderia ficar mais curiosa ou entusiasmada, mas aqui e agora, não faz a minha cabeça.
Nossa, mas que coincidência, era o livro que comecei a ler agora…
“A vida atual está contaminada até as raízes. O homem usurpou o lugar das árvores e dos animais, contaminou o ar, limitou o espaço livre. Mas o pior está por vir. O triste e ativo animal pode descobrir e pôr a seu serviço outras forças da natureza. Paira no ar uma ameaça deste gênero. Prevê-se uma grande riqueza… no número de homens. Cada metro quadrado será ocupado por ele.”
Quando Svevo escreveu isso, em 1923, foi profético. “A Consciência de Zeno” é um grande livro.
Achei muito interessante. A idéia é muito original. E, no final, seremos perdoados de todos os nossos pecados e viveremos no paraíso, livres, leves e soltos…
Acho que essa coisa da prosa “chata” que foi mencionada aí em cima tem a ver com o fato de que a obra de Svevo tem mais de 80 anos de publicada – e, portanto, seu estilo não foi influenciado pelo Cinema. Svevo escreve aquela prosa que não tem a agilidade de uma cena de filme. Mas, de modo algum, é um texto chato. Eu adorei quando o li – se bem que acho que muitos leitores de hoje terão mesmo dificuldades com a leitura.
A única coisa que me incomodou foi a obsessão do narrador pelos cigarros. Como, pessoalmente, DETESTO cigarros e fumantes me incomodam, páginas e páginas sobre o tabaco me enojaram um pouco. Mas é sim um GRANDE livro, esse.
Tenho este livro, vou lê-lo com certeza.
Respeito completamente quem gosta do livro, que pode até ser muito bom, mas só para ser mais específica, eu não compraria o livro por esses três parágrafos. Sei lá, não me seduziram…
Geralmente os grandes amigos são aqueles que nós inicialmente tivemos algum tipo de reação adversa. Essa é uma experiência que ouça sempre. O nosso amigo Ítalo e a sua Consciência são uma experiência inesquecível. Eles se tornarão grandes amigos. Experimentem.
Cara Clara e demais caros, este foi um dos melhores livros que li. Portanto, esse negócio de ficar com a primeira impressão não é das melhores opções. Detalhe: emprestei o mesmo, não me lembro pra quem e nunca mais tive notícias. Uma pena, pois gostaria de, no mínimo, dar uma olhada novamente.
Deve ser o recorde mundial de comentário superficial esse da Clara. “Sei lá, não me seduziu…”. Livro não é cantada barata em bar, babe. Você vem sempre aqui?
Melhor livro do mundo!
Arnaldo, é tudo que posso dizer sem ter lido o livro, ou este seria o blog do consenso ou do silêncio. Você que aparentemente leu, tem o quê para falar do livro? Em quê seu comentário foi mais substancial do que o meu?
Como o meu tempo é escasso, tenho sim que ser seduzida pelas palavras, pelas coisas, ou por amigos e mesmo por blogueiros, como a Janete ou o Erwin. Jamais silenciarei porque algum Arnaldo escreveu superficialmente que eu devo “ser o recorde mundial de comentário superficial”. Eu, pelo menos dei uma opinião sobre o trecho que o Sérgio colocou. Você, não tendo feito nada disso, fez um comentário sobre mim. Tem coisa mais rasa?
Vou fazer uma apresentação também do miolo para facilitar o convívio com o Ítalo, mas ressalvo que ele tem opiniões fortes:
“Uma palavra estúpida que se nos escapa, deixa lembrança mais pungente do que um feito criminoso inspirado pela paixão.
Não há nada mais desagradável do que ver repelir um conselho sincero laboriosamente meditado e que nos custou horas de insônia.
A vida não é difícil: e estapafúrdia.
Ora a gratidão, é sem dúvida o grau supremo da gentileza.
Não devemos ter pena de ninguém, senão esse sentimento toma posse da nossa vida e daí resulta aborrecimento profundo. A lei da natureza não dá direito à felicidade; pelo contrário prescreve a miséria e a dor.
Como todos os seres fortes, só tinha uma idéia em vista: vivi para ela e ela fez a minha riqueza. ”
São frases mais ou menos aleatórias que me chamaram a atenção à época.
Sérgio, que tal pôr aqui nos “Começos Inesquecíveis” o primeiro parágrafo do conto “Eu, o Estranho”, do Rubens Figueiredo. A pérola está no livro “As Palavras Secretas”. Excepcional!
Erwin, legal, vou dar uma folheada com atenção na próxima vez que entrar numa livraria.
Oi Clara, espero que você goste e não se desaponte. Felicidades.
Estamos muito bem de escritores ítalos: Svevo ou Calvino, só maravilhas.
Esse final lembra Gore Vidal, que acha o ser humano destruidor da vida e que a natureza só voltará ao equilíbrio quando essa espécie predadora estiver extinta. É mais um dos dramas insolúveis que se impõem à humanidade: o descolamento entre os que pensam e os que fazem. Somos pequenos demais para alterar qualquer coisa (por exemplo, não vamos nunca higienizar a política) e nada temos a ver com as forças que dirigem o mundo e decidem nosso destino, criando angústias possessivas que não se saciam por mais que compremos o último tipo de celular, o último CD, o carro no ano, e outras bugigangas que nada têm a ver com a natureza humana. O desespero veio para ficar.