Na manhã em que a última filha dos Lisbon decidiu-se também pelo suicídio – foi Mary dessa vez, e soníferos, como Thereza –, os dois paramédicos chegaram à casa sabendo exatamente onde ficavam a gaveta das facas, o forno, e a viga no porão à qual era possível atar uma corda. Saíram da ambulância, como sempre andando mais devagar do que gostaríamos, e o gordo disse entre dentes: “Isso não é a TV, gente, mais rápido não dá.” Carregava o pesado equipamento cardíaco e o respirador, passando pelos arbustos que haviam crescido de forma monstruosa, pisando o gramado transbordante que fora liso e imaculado treze meses antes, quando os problemas começaram.
Assim, entregando o fim para garantir desde a primeira linha que o leitor só abandonará o livro antes da hora se for ruim da cabeça, tem início a viagem poética e mórbida – praticamente neo-simbolista, pensando bem – de “Virgens suicidas” (Rocco, 1994, tradução de Marina Colasanti). Para quem se interessa pelas engrenagens da escrita, o belo romance de estréia do americano de ascendência grega Jeffrey Eugenides merece destaque ainda por um recurso inusitado: a narração é toda feita na primeira pessoa… do plural.
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O mesmo fez Garcia Márquez no início de “Crônica de uma morte anunciada”: “Na manhã do dia em que o matariam, Santiago Nazár acordou tarde…”, ou algo assim.
Certo, Rodrigo. “O mesmo”, no caso, se refere a antecipar o fim, não é? GGM gosta do truque, que usou primeiro no Cem anos de solidão: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía se lembraria daquela tarde remota em que seu pai o levou para ver o gelo”.
Não chega a ser nada novo: fazendo isso, transfere-se a expectativa do leitor, ou seja, a tensão narrativa, do “para onde vamos” para o “como chegaremos lá”.
No entanto, para evitar mal-entendidos, é importante frisar que esses livros de García Márquez não usam a primeira pessoa do plural, o principal lance de técnica que eu destaquei no “Virgens suicidas”.
Só pra não passar em branco: belíssima frase do Tchecov.
Oi, Sérgio. Nas visitas ao seu espaço, sempre aprendemos muito. Isso é, realmente, muito bom. Quando, no Colégio, se pergunta: ” Essa narração é feita em qual pessoa…” Constatamos que, muitos alunos, nem percebem que existe tal coisa em um livro. Nossa!
Que tal sempre usar alguns truques para melhor aproveitarmos nossas leituras?
Esse: “…andando mais devagar do que gostaríamos…” Bom demais. Nossos agradecimentos.
Quem começou este negócio de mudar a pessoa do narrador, fora das tradicionais primeira e terceira, foi o francês Michel Butor, numn romance intitulado “A Modificação”, publicado pela Editora Itataia em fins da década de 1950. Outra curiosidade deste livro: a capa da edição brasileira, feita por Álvaro Apocalipse, mostra um homem sentado numa cadeira de tre-de-ferro, homem este q.
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de trem-de-ferro, homem este extremamente parecido com uma caricatura de JK.
Fique curiosa, como é sempre uma primeira pessoa que narra, nesse caso, trata-se de um “eu” que se nomeia “nós”, ou são vários narradores? apenas vi o filme. interessante.
Cara Pérsia, desculpe a demora, seu comentário tinha me escapado. Não se trata de um plural de modéstia ou nada do gênero. O narrador é coletivo mesmo, como se fosse um coro (grego?) dos garotos da vizinhança, todos apaixonados pelas irmãs Lisbon. O filme é bem simpático, mas o livro é muito melhor.
não me importo com ovo ou galinha, virges suicidas, na minha opinião, ainda é um belíssimo livro e um dos meus prediletos. e mesmo a adaptação para o cinema foi um raro caso de trabalho que consegue acrescentar ainda mais magia à história.
também gostei muitíssimo de middlesex. tanto que me peguei pensando se o eugenides não era de fato uma calliope.
Gabriela, fui o mediador da mesa de Eugenides e Jonathan Coe, na Flip de dois anos atrás. Se ele é uma Calliope, é aquela do fim do livro, de cabelo curto e roupas de homem. Mas não parece não.
hahaha, você põe a sua mão no fogo? 😉
Não, não.