Eu nasci duas vezes: primeiro como uma menininha, num dia excepcionalmente despoluído de Detroit, em janeiro de 1960; e depois outra vez como um rapaz adolescente, num ambulatório de emergência perto de Petoskey, Michigan, em agosto de 1974. Os leitores especializados talvez tenham esbarrado comigo no estudo do dr. Peter Luce, “Identidade sexual em pseudo-hermafroditas com 5-alfa-redutase”, publicado no Journal of Pediatric Endocrinology em 1975. Ou talvez tenham visto minha fotografia no capítulo 16 do hoje tristemente ultrapassado Genetics and Heredity. Sou eu lá na página 578, sem roupa, diante de um gráfico que indica minha altura, com uma tarja preta sobre os olhos.
É a primeira vez que repito um autor nesta seção, mas o americano de origem grega Jeffrey Eugenides merece. Como o início de “Virgens suicidas”, narrado na primeira pessoa do plural, o de “Middlesex” (Rocco, 2003, tradução de Paulo Reis) também usa o velho mas eficaz expediente de deixar entrever o fim de sua história, e que história – mas apenas o suficiente para que o leitor não consiga mais abandonar o livro antes de descobrir como chegaremos lá.
7 Comentários
A primeira pessoa é a voz da vez.
Taí um cara que nunca li, mas pelos fragmentos que andei lendo aqui me parece muito bom. Vamos ver se consigo achar algo no Berinjela. Oremus.
Ah, sim: relendo o fragmento do Eugenides, me veio à cachola a seguinte hipótese com relação aos nossos autores deste início tenebroso de século: temos grandes escritores, mas carecemos de bons contadores de histórias. É por isso que todo jovem autor é relativamente capaz de produzir uma página de prosa magnífica, com tudo que pode dentro: metalinguagem, estupro da gramática/sintaxe/semântica, múltiplos níveis de significado (lembremo-nos da hoje tão banal frase “Literatura é linguagem carregada de significado” que, confesso ruborizado, até agora, anos depois da primeira vez que a ouvi, não entendo muito bem; qualquer aspirante a Paulo Coelho sabe recitá-la de cor, é um credo – credo!) e, por último mas não menos importante, com um desprezo absolutamente abissal pelo enredo. Como disse certa vez Philip K. Dick (um bom contador de histórias), e eu repito com ligeiro espírito de provocação, “Virgínia Woolf acabou escrevendo sobre o nada”. É mais ou menos o que os nossos (não só nossos: com um pouquinho de boa-vontade podemos ver isso em toda parte; não é nosso privilégio brasileiro) jovens (e nem tão jovens) autores andam cometendo.
Sherazade não morreu, é certo, como o provam autores como esse eugênico Eugenides, mas está uma velha desdentada, à la moitié surda, cega de um olho e atualmente ninguém lhe presta muita atenção. É triste. Eu, que sou um tanto antiquado, ainda acho que o enredo é parte indispensável de uma página de prosa de ficção – mesmo se for um enredo não-linear, também não se precisa mais chegar a tanto. Pobre Sherazade! Ainda bem que continua a ter aceso um círio no meu altar pessoal às divindades tutelares da Literatura. Pobre Sherazade…
P.s.: Desculpem a quantidade de parêntesis (muitos), mas é que eu gosto (na verdade, adoro) parêntesis. (São tão divertidos!). Em geral não consigo escrever um parágrafo sem meter (mesmo que ligeiramente) um (par de) parêntesis.
metalinguagem pode afastar leitor se não for bem feita e bem dosada. Perigo para iniciantes.
Sérgio, voltando a outro assunto, no Inactivism ( http://inactivism.blogs.ie/ ) o cara postou algo interessante, discordando sobre o que disseste posts abaixo. Também há um texto em meu blog um tanto a ver. Enfim, abraço.
Ronaldo, achei muito boa a sua idéia do escritor sendo observado pelo leitor enquanto escreve. Apenas algumas observações, para que a gente se entenda, pois parece que você me compreendeu meio mal (e o sujeito lá do outro link, que me acusa de cerebral, nem se fala). Não defendo que não se contem histórias – pelo contrário, contar boas histórias, para mim, é algo que tem feito falta à literatura brasileira. O artifício pelo artifício ninguém agüenta. Só acho que não dá para escrever hoje como se escrevia no século XIX. Ou nas primeiras décadas do XX. Até para ser ingênuo – ou “transgressor” – o cara precisa saber o que faz. O que acho importante é levar a sério esse ofício, aprender de verdade, a ponto de chamar para a briga um cara como o McEwan, que conversa com uma longa tradição em vez de fingir que a literatura foi inventada hoje de manhã. No mais, cada um vai fazer do jeito que achar melhor, claro. E vamos em frente, o futuro é um breu, boa sorte para nós.
Eugenides se superou no livro Middsex. No ano de 2003, quando ele esteve em Parati, pude ouvir ele narrar um trencho do livro que achei fabuloso. Ele fez o que poucos hoje fazem nos testos de maior fôlego: manter a antenção do leitor da primeira a última linha. Fantástico!