Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do Alferes José Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da Ponta das Baleias, pouco antes de receber contra o peito e a cabeça as bolinhas de pedra ou ferro disparadas pelas bombardetas portuguesas, que daqui a pouco chegarão com o mar. Vai morrer na flor da mocidade, sem mesmo ainda conhecer mulher e sem ter feito qualquer coisa de memorável. É certamente com a imaginação vazia que aqui desfruta desta viração anterior à morte, pois não viveu o bastante para realmente imaginar, como até hoje fazem os muito idosos em sua terra, todos demasiado velhos para querer experimentar o que lá seja, e então deliram de cócoras com seus cachimbos de três palmos, rodeados pelo fascínio dos mais novos e mentindo estupendamente.
No início de “Viva o povo brasileiro” (Nova Fronteira, 1984), João Ubaldo Ribeiro anuncia de cara a morte (mas será mesmo?) do protagonista, como faz Gabriel García Márquez em “Cem anos de solidão”. Mas não fica nisso: baianamente, deixa claro que essa é só uma das vidas do sujeito. Fica apenas insinuada a sugestão de que vale a pena seguir cada uma delas. E vale mesmo. Não será surpresa para este blogueiro se dentro de – digamos – noventa ou cem anos, quando refluir toda a espuma irrelevante do que chamamos de “cena literária contemporânea”, ficar claro feito água que as 673 páginas dessa obra-prima marcam a última tentativa das letras pátrias de dar conta de nosso país de dimensões épicas como um todo. O último relance que tivemos da imagem inteira, por assim dizer, antes que ela se quebrasse em milhões de pedacinhos.
14 Comentários
Deu muita vontade de ler o livro. Adoro o Ubaldo das crônicas, mas acho que agora vou ler o famoso Viva o povo brasileiro.
Inda tem o sensacional contudo iniciando um romance. Que tudo veio antes?
Viva o povo brasileiro é um dos meus romances preferidos. É daqueles livros que a gente vai lendo e se perguntando “mas como é que o autor conseguiu juntar tantos fios numa trama só?” É absolutamente genial. Mas só acho o começo inesquecível porque as primeiras 10 páginas funcionam quase que como uma muralha verbal. Ao reconstruir o português da época, Ubaldo criou um texto cheio de maneirismos e volteios, tão bonito quanto chato. No entanto, assim que a gente se acostuma à dicção e mergulha no livro não sai mais dali. Viva o povo brasileiro sim. E viva também o autor!
Caro Sérgio,
Viva o povo brasileiro é um grande romance, não há dúvida. E seu autor um erudito poderoso. Mas tem falhas. Incomoda o excesso de canalhice dos brancos e a aura de santidade dos pretos e pardos. É ruindade e bondade demais, fica artificial. Outra coisa: a narração da Guerra do Paraguai imitando a Ilíada, com orixás no lugar dos deuses, ficou uma coisa meio boba. Há também núcleos de ação soltos, sem conexão com o romance (ex: o baiano priápico e chovinista cujo nome me esquece). Enfim, o livro é apaixonante, não há dúvida, os personagens exuberantes (meu favorito é Bonifácio Odulfo) e os episódios riquíssimos (gosto da morte lenta e sádica do Barão de Pirapuama), e uma aula de português para filólogo e gramático algum botar defeito, mas não é perfeito.
abração,
Ricardo Almeida
Posso estar enganado, porque li o livro há muito tempo, mas acho que o coronel Aureliano Buendía não morre no pelotão de fuzilamento descrito na cena inicial de Cem Anos de Solidão. Não tinha uma história de a bala atravessar o peito dele sem causar ferimento? Enfim, fica aqui minha dúvida….
Ricardo, eu me diverti muito com os orixás dando uma de deuses gregos na Guerra do Paraguai, mas sobre o livro não ser perfeito, estamos de acordo. Não creio que a perfeição seja ingrediente fundamental das obras-primas. Pensando bem, imagino que em certos casos até atrapalhe.
Luis, sua observação é boa, também fiquei em dúvida. Faz cem anos que não leio Cem Anos de Solidão. Alguém aí se lembra?
Ixe Ricardo,
tem narração da Guerra do Paraguai imitando a Ilíada?
Ixe, agora desanimei…
Relaxa marina o livro eh bom e tem um ritmo e tanto, eh longo nem sempre a gente entende oque este ou aquele personagem esta fazendo ali , depois as coisas se explicao. A coisa da guerra eh so um pedacinho do livro . Se achar muito ruim da pra pular. Vale o trabalho de segurar o tijolao.
Humm… A obra de GG Marquez não seria o início de Crônica de Uma Morte Anunciada, por supuesto?
Aliás, belo começo!
Não, Daniel, me refiro ao início de Cem anos de solidão mesmo: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía se lembraria daquela tarde remota em que seu pai o levou para ver o gelo”.
Viva o Povo Brasileiro, como o pp povo, terá problemas e tal… Mas, quem pega e lê de primeira, como eu fiz há uns tantos anos, nem nota. Quase não nota que está acabando, gostaria que continuasse… (Pelo menos o povo continuará, não? Alguém escreverá.).
Os comentários de Rosa, Ricardo e do pp Sérgio dizem tudo.
E agora deu vontade de reler. Mas, dessa vez, com calma…
Aureliano Buendia não morre no fuzilamento, acho…
Nunca esqueci e sempre cito este livro pela visão sensível da gastronomia aplicada ao canibalismo. A carne dura do português, a rançosa do espanhol, a rara, tenra e saborosa do holandês (tão fácil de caçar), a tripinha do padre bem lavada com limão… Dá água na boca e inveja do caboco Capiroba.
Aos procuradores de perfeição, olhem-se no espelho.
O coronel Aureliano Buendía é salvo aos 44 do segundo tempo. Ele não morre diante do pelotão de fuzilamento. Quem morre no começo é Santiago Nasar (“Crônica de uma morte anunciada”)