Até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro Dágua. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das testemunhas, lacunas diversas. Não há clareza sobre hora, local e frase derradeira. A família, apoiada por vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente na versão da tranqüila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida quase vinte horas antes daquela outra propalada e comentada morte na agonia da noite, quando a Lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistérios na orla do cais da Bahia. Presenciada, no entanto, por testemunhas idôneas, largamente falada nas ladeiras e becos escusos, a frase final repetida de boca em boca representou, na opinião daquela gente, mais que uma simples despedida do mundo, um testemunho profético, mensagem de profundo conteúdo (como escreveria um jovem autor de nosso tempo).
E já que andamos falando por aqui de novela, que a preferência do mercado editorial por romances anda transformando numa espécie de “formato que não ousa dizer seu nome”, eis o começo da pequena obra-prima “A morte e a morte de Quincas Berro Dágua”, novelinha lançada em 1958 por Jorge Amado (Record, 41a edição, 1977) e um de seus textos que se sai melhor na luta contra o tempo. A famosa frase atribuída a Quincas – talvez derradeira, quem sabe póstuma, isso se não for só uma balela – é algo parecido com o seguinte, embora cada testemunha tenha sua versão: “Cada qual cuide de seu enterro, impossível não há”.
19 Comentários
Não gosto em geral do Jorge Amado, mas tenho de concordar: essa novela não faz feio, mesmo hoje em dia (ao contrário de alguns dos seus romances-documento, que caducaram).
Aliás, falando de novelas, acaba de sair uma de Zulmira Tavares Ribeiro, resenhada – e chamada mesmo de “novela”, o que é raríssimo – ontem no Prosa & Verso: “Jóias de família”.
Zulmira Ribeiro Tavares, Saint-Clair.
A ordem dos fatores não altera o produto, Thiago.
Procurando bem, a gente acha um monte de novelas inesquecíveis e inconfundíveis quanto ao gênero. Agora me ocorre o magnífico Fome de Knut Hamsun, mas será que Um copo de cólera do Raduan não pode também se encaixar neste conceito? E O alienista de Machado?
A invenção de Morel, do Byoy Casares?
Bioy, antes que me corrijam…
As fronteiras são mesmo nebulosas: para mim, levando em conta a extensão, “O Alienista” é um conto longo. Mas, levando em conta o critério da ausência de subtramas e o pequeno número de personagens, poderia perfeitamente ser enquadrado como novela. Acho que depende dos olhos de quem vê.
Na década de 90 havia uma revista, publicada pela Record e vendida nas bancas de jornais, chamada Isaac Asimov Magazine (irmã da IAM americana). Quando eles publicavam contos muito longos – em geral, um por edição -, com umas 30 ou 40 páginas, chamavam-no de “noveleta”…
Realmente, “A Morte e Morte…” resistiu bem à prova do tempo, vale a pena uma relida…
no mercado editorial americano existe esta classificação, noveleta. Mas, até onde saiba, os escritores repudiam tal classificação, que para mim é cretinice de editor ocioso.
“Romance” e “novel” – Classificação de gênero literário é mais coisa para crítico ou historiador do que para o criador, que faz sua obra sem muita preocupação de como “definir seu gênero” [felizmente!]. A idéia de que o romance seja um gênero literário moderno (sec XVIII) foi problema levantado pela crítica inglesa. Acontece que, em inglês, há duas palavras – “romance” e “novel” para designar gêneros próximos mas não iguais. O “romance” é uma “narrativa fictícia na qual o cenário e os acontecimentos estão muito distantes daqueles que existem na vida comum, e a palavra é usada principalmente para certo tipo de obras em prosa de ficção dos séculos XVI e XVII, nas quais a história é cheia de digressões intermináveis” (definição adaptada de dicionários ingleses)
Os espanhóis chamavam este gênero “novela bizantina” e Cervantes, depois de ter escrito o “Dom Quixote,” escreveu outra obra-prima, “Os Trabalhos de Persiles e Segismunda” (que, dizem alguns biógrafos, era sua preferida!), que pode ser usado como exemplar do gênero. No Brasil, temos um “romance” deste tipo: “Máximas de Virtude e Formosura com que Diófanes, Climena e Hemirena, Príncipes de Tebas, Venceram os mais Apertados Lances da Desgraça” [1752], de autoria de uma mulher, a paulista Teresa Margarida da Silva e Orta [irmã daquele Matias Aires que escreveu um tratado sobre a Vaidade]. Poucos anos atrás este livro foi reimpresso, com modificações meio bárbaras, que atingiram até o nome dos personagens. Trata-se do PRIMEIRO romance brasileiro e merecia melhor sorte! Dizia-se “bizantina” porque o gênero era claramente ligado aos chamados “romances gregos.”
Ao mesmo tempo, os críticos ingleses acham que o gênero “novel,” embora incorpore algumas coisas do “romance,” é verdadeiamente uma invenção do século XVIII. Seu aparecimento estaria diretamente ligado ao desenvolvimento de uma economia capitalista, e “Robinson Crusoe” seria a primeira obra que já tem todas as características do gênero. Metaforicamente, “novel” é uma forma de captação de riqueza, já que, como a ópera no mundo musical, procura usar de elementos de todos os outros gêneros literários. Em miúdos: “romance” trata do improvável imaginativo; “novel” é gênero cimentado em fatos do mundo real e nas leis de probabilidade [ainda de dicionários ingleses).
Não vale a pena querer adaptar a dupla portuguesa “romance/novela” a este sistema inglês, já que a nossa “novela” considera outros elementos (como extensão, por exemplo) e se aproxima mais do italiano de Bocaccio. Considerar “extensão” para definir gênero literário é coisa meio problemática. Mas isto já é outra história como diria o de Samósata (que também escreveu um tratado sobre como escrever História, de que existe tradução portuguesa). [Texto já publicado aqui antes.]
Outro detalhe: os alemães chamam de “novella” a algo que, do ponto de vista de extensão, fica entre o romance e o conto. “A Metamorfose”, de Kafka, a “Morte em Veneza”, de Thomas Mann e o “Werther”, de Goethe, são “novellas”.
Começos inesquecíveis: Pedro CuriangoClassificação de gênero literário é mais coisa para crítico ou historiador do que para o criador, que faz sua obra sem muita preocupação de como “definir seu gênero”em sua revisão histórica, comparando romance a novela.
Curiango: beleza, mas a tradução do inglês novel para o português é, simplesmente, “romance”. Nossa “novela”, lá, é novella, novellete (que, cuidado, pode ser pejorativo) ou apenas short novel. É sempre bom lembrar, para evitar a confusão dessas categorias que, naturalmente, interessam mais ao crítico que ao criador.
Relamente, Sérgio, um grande começo deste que é um dos melhores do baiano. Bem lembrado.
Que beleza de texto! Não conhecia. Ritmo…
Jorjão tem muita coisa muito ruim, mas tem umas coisas legais também…
Esse Quincas está no segundo grupo.
Jorge Amado não pode ser subestimado. Em uma das edições, prefaciada por Vinicius de Moraes, ele aborda a semelhança desta obras com as grandes novelas escritas por autor russos. Se Jorge Amado optou por uma literatura popularesca em grande parte de sua obra é porque queria escrever para o maior número de pessoas, e creio, foi uma decisão consciente. Por que seria um contra-senso surgir de um autor menor, obra como essa – Quincas Berro D’água. E se ele quisesse escrever grande literatura não teria dificuldades. Ah, ela foi publicada em capitulos na extinta revista Manchete.
Ilda, a Machete ainda é publicada. Pelo menos 1 número por ano. Depois do carnaval.
Desculpem…reformulo a minha frase acima:
Jorjão tem muita coisa DE QUE EU NÃO GOSTO.
MAS TEM MUITA COISA QUE ME FASCINA. O QUINCAS É UMA DELAS…