D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos se confia. Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça.
“Memorial do convento” (Bertrand Brasil, 1998, 22a edição), que José Saramago publicou em 1982, é um livro do início da “fase madura” do autor português – aquela, prolífica, que lhe valeria sua enorme popularidade e o Nobel. Naquele tempo o estilo aliciador de Saramago, com traços viciantes, ainda era novo demais para criar anticorpos no leitor ou para ser acusado de repetitivo. Resultado: D. Maria Ana Josefa podia ser estéril, mas a prosa era a própria fecundidade.
15 Comentários
Para além desta fase madura, há um livro da outra fase (como classificá-la? “verde”?) que eu acho uma pequena jóia: “Manual de pintura e caligrafia”. Ninguém aqui no Brasil fala dele. Nem em Portugal, onde meus amigos portugueses nunca o leram. É talvez o meu Saramago preferido.
Saint-Clair,
No “Manual de pintura e caligrafia” ele fala de artes plásticas?
Caro Sérgio,
goataria de sugerir para a seção “Finais Inesquecíveis” o início do belo romance “Conversas na Sicília”,do italiano Élio Vittorini.
Segue trecho:”Eu me encontrava,naquele inverno,à mercê de furores abstratos.Quais eram,não direi.Não me dispus a isso”.
E aí vai. Acredito que você conheça. É maravilhoso!
Um grande abraço!
Ops!Quis dizer “Começos Inesquecíveis”!
Até.
Clarice:
Sim. O narrador é um pintor raté. Há muitas discussões interessantes sobre artes (sobretudo pintura), sobre mímesis, sobre os limites da representação. É uma pequena jóia – mas encantadora! – na coroa formada pelas obras do Saramago.
Clarice, se você gosta de romances que falam de artes plásticas, leia o recente Busca o Meu Rosto, de John Updike. É bem interessante.
Eu lembro da primeira vez que abri Memorial do Convento, de curiosidade, na livraria. Esse início sensacional me fez comprar o livro e lê-lo todo, rapidamente. Vertiginoso: me parece ser o melhor adjetivo para classificá-lo, digo, o início: o uso do presente em um romance histórico, os volteios das frases, as eventuais interferências coloquiais… É bom demais.
não lembrava do começo deste livro, só não esqueço, que para mim, não foi das melhores leituras – havia momentos de intenso brilho e vida e outros arrastados e opacos…
Saint-Clair Stockler,
Fiquei curiosa. Adoro quem escreve com relação entre pintura.
Sabe que o Sábato também pinta?
A Clarice Lispector também pintava. Vi uma exposição dela e vi suas pinturas. Olha! Não deixava a dever não.
Sei que tem, ou tinha um site com algumas pinturas dela. Vou googlar e ver se acho. Depois ponho aqui.
Faz muito tempo que vi isto. Na época do “Altavista”.
Leia “O Túnel” do Sábato. O narrador é um pintor também.
Quem estudou muito mímese foi o Luis Costa Lima. Eu acho o trabalho dele muito bom. Pena que ele seja um pouco “estrela”. Vai ser póstumo se o Brasil conseguir aprender a ler e se interessar por Literatura e Filosofia. Será que somos uma espécie em extinção? Vou ligar para o IBAMA.
O Ano da Morte de Ricardo Reis, do mesmo Saramago, é equivalente ao Memorial. Segundo o próprio, naquele livro ele “tocou o teto”. Li algumas obras dele, e acho que, começando por Levantado do Chão, até o Evangelho Segundo Jesus Cristo, Saramago é irretocável. E também acrescentaria um livro posterior: Todos os Nomes.
Depois disso, dizem que ele “piorou”, ou começou a “enjoar”. Não sei… Li o Ensaio Sobre a Cegueira e, em comparação com os outros livros citados, achei-o menos brilhante. Todavia, o Memorial é obra de gênio.
Jonas,
A indicação era para a Clarice, mas me serviu tb. O livro parece muito interessante! Obrigada!
“A Moça do Brinco de Pérola” é minha indicação. Literatura sobre pintura. Livro e filme.
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