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Começos inesquecíveis: Julio Cortázar

03/11/2006

Encontraria a Maga? Tantas vezes, bastara-me chegar, vindo pela rue de Seine, ao arco que dá para o Quai de Conti, e mal a luz cinza e esverdeada que flutua sobre o rio deixava-me entrever as formas, já sua delgada silhueta se inscrevia no Pont des Arts, por vezes andando de um lado para o outro da ponte, outras vezes imóvel, debruçada sobre o parapeito de ferro, olhando a água. E, então, era muito natural atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me da Maga, que sorria sempre, sem surpresa, convencida, como eu também o estava, de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel com linhas para escrever ou aquelas que começam a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta dentifrícia.

Este é o começo “natural”, o do percurso de leitura que vai do capítulo 1 ao 56, do romance “O jogo da amarelinha” (Rayuela), lançado em 1963 pelo argentino Julio Cortázar (Civilização Brasileira, 4a edição, 1982, tradução de Fernando de Castro Ferro). Há ainda, no mínimo, um segundo e ziguezagueante livro dentro do volume de 522 páginas, segundo as instruções do autor: começa no capítulo 73, volta ao 1 e ao 2, pula então para o 116 e lá vamos nós. Parece uma gratuidade, pura mistificação, experimentalismo picareta? Será por isso que Cortázar (1914-1984) anda meio fora de moda? Reencontrarão os leitores do século XXI o prazer de ler esse estupendo escritor? Encontraria a Maga?

18 Comentários

  • João Paulo 03/11/2006em06:22

    Foi meio cult numa época e eu lí. Do livro realmente não lembro muita coisa, mas do tempo eu me lembro bem e era ótimo.

  • Bernardo Brayner 03/11/2006em10:03

    Fora de moda? Como se os blogueiros cultuam Cortázar como um Deus?

  • roberto 03/11/2006em10:06

    concordo com o bernardo. cortázar não está fora de moda. às vezes tenho a impressão de que ele é mais lido e cultuado que o borges, por exemplo. e no brasil sua obra inteira tem sido reimpressa, com razoável sucesso.

  • Sérgio Rodrigues 03/11/2006em10:26

    Bernardo e Roberto, se Cortázar não está fora de moda nos meios que vocês freqüentam, parabéns. E aproveitem. A observação que fiz tem a ver com um Zeitgeist um pouco maior. Enquanto Borges, citado aqui, é cada vez mais respeitado, citado em teses de pós-doutorado e imitado no mundo inteiro, Cortázar me parece escorregar para um certo gueto adolescente. O que é uma pena. Mas isso passa.

  • Gustavo Galvão 03/11/2006em11:20

    Realmente, parando pra analisar, há algum tempo não aventuro num Cortázar. Na faculdade havia uma banda (no qual eu odiosamente cantava) chamada Cronópios (e no qual eu saudava a platéia com um sonoro “Buenas Salenas”). Estive em Buenos Ayres há um mês, e realmente nosso Belga está meio esquecido. Mas voltei a ler “Os Prêmios”, romance de estréia, e ainda encontramos a triavilidade labiríntica que pontuou sua obra; tenho preferido, contudo o Juan José Saer.

  • Black Jack 03/11/2006em13:24

    porra, nunca li essa fera, mas como vcs estão dizendo que ele é genial, vou considerar que foi o tradutor quem meteu essa coisa pavorosa no final do parágrafo: “tubo de pasta dentifrícia”.

  • Rodrigo 03/11/2006em14:13

    Segue uma sugestão de Começos Inesquecíveis:
    Antonio Callado – Bar Don Juan

    “João e Laurinha só tinham falado uma vez no assunto. E nunca mais. Mas tinham falado durante longo tempo. Já muito batido e meio abobado ele não retivera as feições do policial que ao soltar Laurinha do pau-de-arara a possuíra no chão. Não retivera as feições de nenhum deles mas precisava da cara daquele. Embora não gostasse de relembrar, João tinha um medo pânico de esquecer. Os próprios torturados, ao cabo de certo tempo, tendem a achar que estão exagerando. Ou colocam-se num plano superior, silencioso e desdenhoso, pois o que não é possível é ter vivido tamanho horror e esbarrar, ao contá-lo, na polida incredulidade de alguém”

    Este é apenas o primeiro parágrafo, mas o livro contua todo ele envolvente e maravilhoso.

  • Saint-Clair Stockler 03/11/2006em15:23

    Prefiro o Cortázar contista.

  • Saint-Clair Stockler 03/11/2006em15:24

    E: entre o Rayuela e o Avalovara, prefiro este.

  • Renato Motta 05/11/2006em18:00

    Embora não seja exatamente um começo, fica como sugestão de comentário durante meu evento literário preferido: A Feira do Livro de Porto Alegre:

    CLAREIRAS

    Se um autor faz você voltar atrás na leitura, seja de um período ou de uma simples frase, não o julgue profundo demais, não fique complexado: o inferior é ele.

    A atual crise de expressão, que tanto vem alarmando a velha-guarda que morre mas não se entrega, não deve ser propriamente de expressão, mas de pensamento. Como é que pode escrever certo quem não sabe ao certo o que procura dizer?

    Em meio à intrincada selva selvaggia de nossa literatura encontram-se às vezes, no entanto, repousantes clareiras. E clareira pertence à mesma família etimológica de clareza… Que o leitor me desculpe umas considerações tão óbvias. É que eu desejava agradecer, o quanto antes, o alerta repouso que me proporcionaram três livros que li na última semana: Rio 1900 de Brito Broca, Fronteira, de Moysés Vellinho e Alguns Estudos, de Carlos Dante de Moraes.

    Porque, ao ler alguém que consegue expressar-se com toda a limpidez, nem sentimos que estamos lendo um livro: é como se o estivéssemos pensando.

    E, como também estive a folhear o velho Pascall, na edição Globo, encontrei providencialmente em meu apoio estas palavras, à pág. 23 dos Pensamentos:

    “Quando deparamos com o estilo natural, ficamos pasmados e encantados, como se esperássemos ver um autor e encontrássemos um homem”.

    Mario Quintana – A vaca e o hipogrifo
    100 anos do poeta – 52 de Feira do Livro

  • Jonas 05/11/2006em22:16

    Acho que Cortázar está na moda sim, mas, como o Sérgio apontou, entre o pessoal mais jovem – esses que também vêm lendo bastante Hilda Hilst, Caio Fernando Abreu e Ana Cristina César. Se vocês derem uma espiada no Orkut, verão que, de autores gringos, o Cortázar é um dos que mais possuem comunidades dedicadas, e sempre cheias de gente. Numa pesquisa dessas dá para notar também como os autores norte-americanos são, em geral, pouco lidos por aqui..

  • Clarice 08/11/2006em07:59

    os contos do Cortazar são ótimos. Não gosto exatamente do “Cronópios e Famas”. Se os adolescentes estão lendo Rayuela é compreensível e muito alentador. É um livro cheio de questões fundamentais a respeito do ser humano, com lições de artes plásticas, literatura, música, filosofia etc.
    Saint-Clair, não consigo comparar comparo Avalovara com Rayuela. São parecidos na forma, talvez, mas propostas diferentes.
    Gosto muito de Cortazar e acho que ele complementa um pouco o Borges. E Cortazar tinha um compromisso político que o fez doar o dinheiro que recebeu do prêmio Médicis pelo “O Livro de Manuel” à causa chilena. Infelizmente este livro é pouco lido embora tenha uma forma narrativa muito boa e dá uma visão da “resistência” chilena.
    Mas é impressionante a quantidade de Blogs e fãs clubs destinados a ele.
    E como tudo o que vira culto a gente tem tendência a por de lado…

  • Clarice 08/11/2006em19:34

    Para quem gosta do Cortazar o site:
    http://www.juliocortazar.com.ar
    é muito bom. Tem até sua voz lendo alguns contos. Em Obras os contos em espanhol.

  • Alessandro Garcia 09/11/2006em09:51

    Estou escrevendo uma monografia sobre Cortázar, portanto, há muito tempo lendo tudo dele. Faço leituras de seus livros já há muitos anos e sou um fã confesso. Sempre considerei injustiçado renegar a Cortázar quase “a sombra” de Borges, da mesma forma que fazem com Bioy Casares. Cortázar tem uma profundidade e uma intenção literária ainda mais próxima do jogo – muito mais revelado nas suas narrativas longas – que Borges e de um fantástico que não prima pelo sobrenatural, mas por uma voz que leva muito mais ao estranhamento. Seus contos são obras primas, verdadeiras “esferas”, como o autor define o conto perfeito. E acho natural que desperte tanto interesse, uma vez que nunca foi a “unanimidade” que é um Borges e suscita muito mais investigação e leituras para ser descoberto plenamente.

  • Vinícius Trindade 09/11/2006em10:03

    Essas coisas costumam gerar polêmica, mas gosto mais do Cortázar do que do Borges. Admiro muito a elegância e a fluência dos seus escritos. Tomara que continue “fora de moda”, pois isso faz com que possamos lê-lo mais serenamente, sem arroubos de paixão desenfreada.

  • Clarice 09/11/2006em12:15

    Tá bom, tá bom… confesso: sou fanzoca do Cortázar também.
    Alessandro Garcia,
    Estou no seu Blog e está me parecendo muito bom.
    Quanto ao Cortázar: nunca digo a ninguém os meus afetos literários. Mas como você está saindo do armário e ninguém sabe quem eu sou (uma das vantagens da Internet) eu confesso.
    Não acho que seja produtivo ficar comparando os escritores latino-americanos. Só têm isto em comum. Acho melhor ir por aí.
    Infelizmente as pessoas menos avisadas prestam mais atenção nos “jogos” de Cortázar do que no conteúdo. Em Rayuela aquela aleatoriedade dos capítulos, para mim, significa mais a maneira em que sempre se leu romances. Pula-se capítulos, parágrafos e se lê inteiro caso se goste. Mas sua obra é repleta de questões filosóficas e muito rica em conteúdo e a forma é brilhante.
    Eu admiro que você esteja escrevendo sobre ele. Gosto tanto que jamais escreverei uma linha a respeito. Prefiro reler, reler…

  • Clarice 09/11/2006em12:24

    Tá bom então. Eu acho que a trindade Borges/Cortázar/Sábato é uma festa literária. Eles são da mesma família e se completam. Claro que o Bioy Casares entra também. Mas a trindade, para mim, é completa.

    Vinícius Trindade,
    Quanto tempo! Tá com ciúme do Cortázar, né?:-) Eu trabalhei num lugar e um homem sempre me cumprimentava, conversava e tudo o mais. Sabe que a partir do dia que eu disse que gostava do Cortázar ele deixou de falar comigo? Juro que é verdade! Não tenha ciúme. Se você googlar vai ter fã clube de Cortázar. Já quiseram até fazer o “dia do encontro casual” em homenagem a passagem que o Sérgio transcreveu.
    Olha acho que pode até pegar igual na Irlanda o Blomsday (comer rins, nem pensar).

  • Cláudio Soares 04/12/2006em22:31

    Se Cortázar não está na moda em nosso “zeitgeist hipertextual”, não sei quando mais poderá estar. A releitura estabelecida em “O Jogo da Amarelinha” lembra as propostas de Barthés e aponta novos caminhos (como o Tutaméia de Rosa, com seus 2 índices). É a interatividade necessária e possível. O leitor ajudando o autor a “terminar” um livro (mas como se todos os livros são 1 só, como intui Borges?). No meu romance “Santos-Dumont número 8”, recentemente lançado, eu tento continuar essa proposta (apontando outras possibilidades). A literatura agora também está para além do papel. Cortázar, Macedônio, Osman Lins, Guimarães Rosa, etc… apontaram (adiantadamente) alguns caminhos, pois bem, meus caros, é chegada hora!