Me chame de Ismael e eu não atenderei. Meu nome é Estevão, ou coisa parecida. Como todos os homens, sou oitenta por cento água salgada, mas já desisti de puxar destas profundezas qualquer grande besta simbólica. Como a própria baleia, vivo de pequenos peixes da superfície, que pouco significam mas alimentam. Você talvez tenha visto alguns dos meus livros nas bancas. Todo homem, depois dos quarenta, abdica das suas fomes, salvo a que o mantém vivo. São aqueles livros mal impressos em papel jornal, com capas coloridas em que uma mulher com grandes peitos de fora está sempre prestes a sofrer uma desgraça. Escrevo um livro por mês, com vários pseudônimos americanos, embora meu herói – não sei se você notou – sempre se chame Conrad. Conrad James. Herman Conrad. Um ex-marinheiro de poucas palavras. Um peixe pequeno, mas mais de uma cidade foi salva da catástrofe pela sua ação decisiva entre as páginas 90 e 95. Tenho uma fórmula: a grande trepada por volta da página 40, o encontro final com o vilão, e o desenlace, a partir da página 90. Sobrevivo. Nunca mais vi o mar.
O início de “O jardim do diabo” (L&PM, 1988) não é marcante apenas pela deliciosa prosa metalingüística que brinca com a literatura policial descartável enquanto acena para autores respeitáveis como Melville e Conrad – tudo sem perder o foco da tensão narrativa. É histórico também porque congela o momento em que Luis Fernando Verissimo, já então consagrado como cronista e cartunista, estréia no romance. Não foi propriamente uma estréia espontânea: a MPM Propaganda lhe encomendou uma narrativa longa para dar de presente de fim de ano a seus melhores clientes. Só mais tarde “O jardim do diabo” chegaria às livrarias, sem, porém, jamais atingir a popularidade de outros trabalhos do autor. O que é meio estranho. Os dois romances seguintes de Verissimo – “O clube dos anjos” e “Borges e os orangotangos eternos” – são divertidos, mas “O jardim do diabo” é melhor. Até hoje gosto de revisitá-lo de vez em quando, o que basta para desmentir a tese de que todo homem abdica de suas fomes depois dos quarenta.
13 Comentários
‘The Number One’.
Veríssimo honra a nossa literatura, com seu humor fino. realmente.
Bom, muito bom.
Sérgio Rodrigues, no momento me debruço sobre Boccaccio em Decamerão. Será que vc. poderia, com seu conhecimento abalizado, comentar algo? Estou meio tonta entre histórias como:” (…) Carisendi retira, da sepultura, uma mulher casada que ele amou, que fora enterrada como morta.(…)”
E o poema: “Amor, se me for dado fugir às suas garras, Dificilmente poderei acreditar Que outra garra me possa apanhar.”
Como acontece isto: um escritor está escrevendo um romance e, sem mais, começa a escrever um poema? Peço desculpas por minha ignorância.
Decididamente, Luis Fernando Veríssimo, é pra inglês ler. Credite-se à esta máxima o melhor sentido que ela possa permitir. Gostem ou não, Veríssimo deixa transparecer a fleuma e a elegância britânica (eu não sei por que cargas-d’aduas!). A brasilidade fica por conta da postura crítica e sacana, o que desagua no humor inteligente com que êle nos brinda. Gosto do Veríssimo.
Santinha, nunca li o Decamerão, mas sei que se trata de uma coleção de histórias, que como tal não se destaca pela unidade, e não de um romance. Gênero, aliás, que se costuma dizer ter sido inaugurado pelo Dom Quixote quase três séculos depois. Um abraço.
Sérgio,
Recomendo urgentemente corrigir esa falha e ler o Decameron!
É um livro de contos, sim. Porém há uma história de fundo: um grupo de amigos reúne-se em um castelo para fugir da Peste. Como forma de passar o tempo, reúnem-se a contar histórias e, vez por outra, um deles canta uma canção ou recita uma poesia.
O exemplar que li foi publicado pelas Edições de Ouro e tinha alguns comentários cômicos – como dar dados geográficos “atuais” acerca dos lugares citados! (outros comentários eram bastante pertinentes e úteis para a compreensão da obra).
Ninguém reparou que a grande referência nesse começo de livro é Moby Dick? O nome do protagonista, o mar, a baleia….
Vinícius:
Quando Sérgio diz que Veríssimo acena para Melville, está dizendo (acenando?) que se trata de Moby Dick.
[Essa coisa de Veríssimo ser “inglês” é discutível (no bom sentido). Mas o humor dele tem muito a ver com o que viu e leu em N. York. Um parente estilístico, com certeza, é Woody Alen.]
Obrigada pelas referências, Sérgio e Renato. Boas leituras para os dois. Até…
Adoro este livro, tive a sorte de tê-lo em mãos antes de quase tudo o mais que li de Verissimo, e tornei-me imediatamente cúmplice da genialidade deste grande escritor. Li e reli e, toda vez, é sempre muito prazeroso. Gostei de ver os comentários tecendo referências estilíticas. Nunca tinha reparado, mas ele é meio Woody Allen mesmo. Outro ídolo.
Quando ele capricha, escreve primorosamente. Apesar de achar que ´primorosamente” é um adjetivo meio esquisito e que pode até comprometer a gente.
Verissimo (pai e filho) são geniais…Desde O continente até A familia Brasil, a genialidade aflora econquista até quem não tem o habito da leitura mas nao perde as tirinhas e as cronicas na Zero Hora…
Não sei se foi postado nessa série, mas eu quero colaborar com um começo q, além de primoroso, é quase uma declaração de princípios do movimento a que pertence:
“Hoje, minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem.
Recebi um telegrama do asilo:
‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.’
Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.”
O ESTRANGEIRO. Albert Camus.
Eduardo,
gostei.
Camus é mesmo muito bom… ao menos é o que acho. dele só li inteiro, na verdade, um de “teoria”: “O Mito de Sísifo” – recomendado e meio, com certeza.