Foi assim: quando jovem, eu tinha uma vida muito tumultuada, turbulenta. Gostava muito das emoções. Gostava de me apaixonar muitas vezes (eu me apaixonei muitíssimas vezes). Gostava de viajar, essas coisas de que todo mundo gosta. Mas, aí, a vida foi ficando tão emotiva o tempo todo; aconteciam tantos dramas pessoais! Porque eu me apaixonava muito, mas, depois, me desapaixonava. Era uma coisa estranha. Às vezes a pessoa me via e dizia: “Puxa, eu encontrei a mulher da minha vida”. E eu repetia todas essas coisas que nós dizemos todos: “Eu te amo, meu bem”; “É para sempre?” “Para sempre”; “É até a morte?” “É, até a morte”. Mas então acontecia qualquer coisa química em mim. Eu ia, automaticamente, ficando tristinha. São Francisco diz que “o corpo é o nosso irmão burro”. Ele deseja uma coisa e, depois, deseja outra. Por causa dessa inconstância minha, as coisas iam ficando muito dramáticas: várias pessoas queriam me matar, era horrível. Não era algo que fazia para ofender a pessoa; era algo impossível mesmo de retomar.
Quando eu estava com 33 anos, um querido amigo que morreu, Carlos Maria de Araújo, poeta português, me deu um livro de [Nikos] Kazantzákis: “Carta a El Greco”. Eu o li e fiquei deslumbrada. Era um homem que ficava lutando a vida toda até terminar de uma maneira maravilhosa, escrevendo um poema de 33 mil versos, “A nova odisseia”, onde lutava com a carne e com o espírito o tempo todo. Ele desejava ao mesmo tempo esse trânsito daqui pra lá. Era o que eu queria: o trânsito com o divino. E também o trânsito com o homem e todas as maravilhas da vida, o gozo físico, a beleza física do outro. Era um consumismo meu, absolutamente terrível, porque ofendia muito as pessoas. Eu me impressionei tanto com a caminhada desse homem admirável, que resolvi ir morar num sítio. Achei que, longe e de certa forma me enfiando também (porque eu era uma mulher muito interessante), durante um certo tempo bem longo, eu pudesse trabalhar, escrever. E foi maravilhoso. Foi justamente nesse lugar, nesse sítio, que eu, longe de todas aquelas invasões e das minhas próprias vontades e da minha gula diante da vida, pude escrever o que escrevi. Acho que é verdade que qualquer pessoa que deseje realmente fazer um bom trabalho tem que ficar isolada, tem que tomar um distanciamento. É mais ou menos uma vocação. Você sente que aquele momento é o momento e que não há muito tempo. Às vezes, as pessoas dizem: “Eu vou quando estiver mais velhinho, ou mais velhinha. Ou quando eu estiver pior. Aí eu começo”. Mas acontece que não dá tempo. Então, aos 33 anos, fui para esse sítio onde moro até hoje, e me entreguei a um novo trabalho.
“Difícil”, “louca”, “hermética”, “obscena”, Hilda Hilst (1930-2004) é provavelmente, entre os grandes nomes da literatura brasileira, o que carrega o maior número daqueles estereótipos que cumprem função vital no mundo do semi-intelectualismo – permitir que se julgue conhecer um autor sem ter lido uma linha do que escreveu (leia aqui sua participação na série Começos inesquecíveis, com a abertura da novela “Com os meus olhos de cão”). A própria escritora contribuiu para alimentar essa imagem pública. Ocorre que a poesia, a prosa e o teatro de Hilda, marcados por um personalíssimo misticismo carnal ou erotismo religioso, não são mesmo para principiantes – ou talvez, em sua radicalidade, sejam sobretudo para principiantes.
De uma forma ou de outra, é uma grande notícia o lançamento dessa coletânea de suas entrevistas, “Fico besta quando me entendem” (Biblioteca Azul, organização de Cristiano Diniz, 236 páginas, R$ 44,90). A edição é um luxo, equipada com capa dura e desenhos da própria Hilda, e traz vinte papos da autora com interlocutores do nível de Léo Gilson Ribeiro e Caio Fernando Abreu, ao longo de meio século. Em vários momentos – como o trecho acima, tirado de uma conversa de 1987 com a crítica literária Nelly Novaes Coelho diante de um auditório em Rio Claro (SP) – Hilda aparece aqui mais acessível do que nunca. A candura com que se expõe é perceptível até o fim, apesar de cada vez mais tingida de amargura à medida que os anos passavam e os leitores continuavam, no máximo, pingando. Mas se ela, a candura, não servir de convite para quem ainda não conhece Hilda, quem sabe um trecho como este – relato de um dos momentos em que baixou a “louca” – resolve a parada?
Acho que [a alma] é a consciência que vai sempre se manter. Parece que a gente constrói uma alma. Até sobre esse ponto há uma história engraçada. Fui, junto com [o físico] Mario Schenberg, dar uma aula inaugural na Unicamp. Mario achava que nós, eu e ele, havíamos nascido no Egito, que eu havia sido uma sacerdotisa amiga dele. É claro que ele não falava dessas coisas na universidade. “Tenho medo de perder o meu emprego”, ele dizia. Mas nessa aula, a que compareceram muitos físicos, por causa do Mario, comecei a falar desses assuntos. A certa altura, um físico meio gargalhante, que estava coçando o saco, perguntou: “Quer dizer então que a senhora acredita mesmo na imortalidade da alma?”. Respondi: “Acredito na imortalidade da minha alma. Mas o senhor, se continuar coçando o saco dessa forma, sequer constituirá uma alma!”
3 Comentários
simplesmente sensacional.
Admito, não conheço a prosa ou a poesia de Hilda Hilst. Mas sempre gostei dos “fiapos” que li dela aqui e ali. E os trechos escolhidos por você, Sérgio, são interessantes demais. Mesmo sendo entrevistas, desperta a vontade de ler um texto completo dessa “fera”.
Valeu.
O trecho acima diz (quase) tudo – a abnegação (nada fácil) e a escolha/entrega para construção de uma obra literária. Parece que nem todos os leitores (ainda hoje) estão à altura (ou seria profundidade?) para compreensão da obra de Hilda Hilst. Pelo menos, há algumas sendas e caminhos…