Quis o acaso que eu estivesse lendo dois ensaios de peso sobre a famosa “crise do romance” quando os jornais de terça-feira trombetearam o fim do mundo, com as bolsas de valores derretendo em todos os cantos do planeta e as multidões de saqueadores de Londres ateando fogo à cidade que até então parecia a prova mais risonha de que o multiculturalismo globalizado podia dar em boa coisa, afinal.
Essa atmosfera de fim dos tempos – ou no mínimo de fim de uma era, uma vez que o apocalipse maia em 2012 é duro de levar a sério – foi o ruído de fundo perfeito para a leitura de É possível pensar o mundo moderno sem o romance?, de Mario Vargas Llosa, e O romance é concebível sem o mundo moderno?, de Claudio Magris, ensaios que são, respectivamente, a abertura e o fecho do monumental volume de crítica literária organizado pelo italiano Franco Moretti, “A cultura do romance” (Cosac Naify, 2009, tradução de Denise Bottmann).
Respondendo a provocações em que a ordem dos fatores altera, sim, o produto, o consagrado romancista peruano e seu colega italiano, que também é crítico, não poderiam deixar de adotar posturas diferentes diante de uma questão que, embora visitada à exaustão por pensadores de calibres diversos, continua sendo um nervo exposto: a progressiva anemia cultural da literatura no mundo contemporâneo.
Cada um a seu modo, eles começam por concordar num ponto: o romance criou a voz com que a consciência moderna conversa com o mundo e consigo mesma. Retórico, Vargas Llosa imagina que “o mundo sem romances” seria um lugar “incivilizado, bárbaro, órfão de sensibilidade e pobre de palavra, ignorante e grave, alheio à paixão e ao erotismo”. Mais sóbrio e voltado para a história do gênero, diz Magris: “O romance não é só mimese do mundo moderno mas também se pôs como seu instrumento cognitivo privilegiado”.
Os dois também concordam sobre a sinuca de bico em que o mundo contemporâneo – virtual, pulverizado, superinformado, veloz, visual – pôs o romance, mas aí começam as discordâncias. Vargas Llosa termina seu ensaio com palavras de ordem: “Há que ler os bons livros e incitar a ler”. Magris ensaia uma postura mais desapegada de cientista para constatar que, como a poesia épica morreu, suplantada justamente pelo romance, este também não tem garantia de nada. As formas literárias são históricas, e Magris acredita que hoje “a maior parte dos romances assemelha-se a aparelhos antiquados e obsoletos”. O que talvez nem seja culpa deles, mas apenas subproduto de uma contingência maior, a de que “o mundo moderno, a modernidade com m maiúsculo, acabou ou está acabando”.
Pelas manchetes de ontem, parecia estar acabando mesmo. Mas de repente, levantando os olhos do belo e sombrio tijolão cosaquiano, vi minha filha absorvida num dos magros volumes da coleção infantil “O pequeno vampiro”, da alemã Angela Sommer-Bodenburg. Ela tem devorado um atrás do outro. Seus olhos brilhavam.
Empanturrado de tantas grandes questões, decidi que aquela cena era uma bela resposta ao apocalipse. Doméstica, de uma singeleza absurda, mas mais que suficiente. Bolsas despencam, Londres arde, mas chega uma hora em que é preciso tocar a vida: ler, escrever, amar. Os grandes ciclos históricos que cuidem de si mesmos ou vão para o diabo que os carregue.
11 Comentários
linda a postagem, parabéns. Sempre venho aqui, apesar de nem sempre concordar com suas críticas 🙂
Bravo, Sérgio! Simples e tocante como as coisas mais belas e pequenas sempre são. E isso já dizia o velho bruxo Machado! Tempos vão e não mudam.
Uma vez, li um comentário de um arqueólogo sobre o que mais o encantava em suas descobertas. Era descobrir o cotidiano de cada família ou grupo social pesquisado através de seu potes, panelas e outros utensílios domésticos. Sir Max Mallowan (segundo marido de Agatha Christie) disse que nas tarefas cotidianas é que podemos dizer como aquele grupo viveu, com o que se preocupavam e o que prezavam na vida. Assim, Sérgio, como você, concordo que irão-se os ensaios e os ciclos e ficarão os livros na estante de cada um. Menos preservados se forem lidos avidamente ou perto da água (porque meu lugar preferido de leitura é numa banheira de água quente e meus livros sofrem com a umidade). O romance não só não morreu como nasce várias vezes por dia em cada página lida. Enquanto ensinarmos nossos filhos a ler, o romance sobreviverá. Assim, também, ficará pra sempre na minha memória essa cena singela, mas não frágil, pois ela está a mandar os ciclos para o diabo carregar.
bonito, isso aí, como dizem.
Bárbaro !!! …
Como sobreviver ao fim do mundo « Elemento Língua
Contardo Calligaris escreveu coluna hj sobre “Vampiros comportados” e o desejo adolescente( http://t.co/Gbg96pO )- não trata especificamente de livros (ou do gênero, mas vale a reflexão. Pode-se questionar, todavia, esse ideal de autocontrole, diante do “descontrole” do mundo. Talvez possa surgir uma nova configuração social disso tudo – porque afinal a vida segue, e cada um tem de encontrar as próprias respostas.
Olha só, sergio, acho que vc já tem material para escrever uma tese sobre esse tema do fim do romance, você é um dos que trabalham com a cultura literária e jornalística na rede que mais tematizam a questão, que eu acho muito interessante, mas concordo ipsis litteris (é assim mesmo?) com seu último parágrafo (e com os outros tb): há que fazer isso tudo, e continuar escrevendo, antes que o bólide (de) Melancolia nos perfure a todos nesse planeta insano ::)) Aliás, que filmaço!
grande abraço,
clara lopez
Sobre 2012, recomendo a leitura do livro O MUNDO VAI ACABAR EM 2012?, de Raymond Hundley, com uma análise bem documentada e justa deste “fenômeno” e tirem suas próprias conclusões.
Caro Sérgio,
você tem ideia de quando serão publicados os demais volumes
dessa série? O plano original era de um volume por semestre,
e já deveriam ter saído uns quatro. Se era pra fazer um papelão
desses, a Cosac Naify deveria ter publicado apenas um apanhado da obra,
como foi feito em alguns países.
Não tenho essa resposta, Sebastião. Um abraço.