Enrique Vila-Matas publicou na última sexta-feira no “El País” o artiguete que traduzo abaixo:
Embora inconciliáveis entre si, três atitudes diante da arte literária podem ser igualmente fascinantes. No fundo, as três respondem à questão de como posicionar-se diante do mundo, como viver. Se me perguntassem, seria difícil precisar com qual me afino mais, pois todas têm a mesma carga de verdade íntima, o que não faz mais que comprovar que, como sustentava Niels Bohr, o oposto de uma verdade não é uma mentira, mas outra verdade.
Mesmo assim, reconheço que por algum tempo tive minhas preferências e admirei, acima de todas, a atitude elegante dos solitários, dos que têm desejo de clausura, de torre de marfim, uma necessidade de isolamento para atender apenas à sua obra. Tudo mudou quando me dei conta de que estava reparando apenas em criadores de indiscutível estatura moral e intelectual; andara estudando, por exemplo, Wittgenstein, lendo tudo sobre o ano que ele passou em radical solidão na cabana de Skjolden, na Noruega, onde sentiu uma grande euforia ao ver que podia se dedicar inteiramente a si mesmo, ou melhor, ao que acreditava ser a mesma coisa, a sua lógica, o que lhe permitiu ter pensamentos que eram “inteiramente seus”.
Tão certo quanto as obrigações e expectativas impostas pela vida social restringirem a liberdade de se concentrar na obra é o fato de que o isolamento pode produzir um tipo de escritor escassamente gentil e intelectualmente limitado, eu diria que muito comum em nossa terra, ensimesmado em seu mundinho cultural provinciano, depreciativo com os vizinhos europeus e latino-americanos, fechado à contribuição dos outros, jamais aberto ao diálogo com o contemporâneo.
Perceber essa sombra escura na atitude de tantos solitários me fez abandonar a admiração irrestrita pelo isolamento, e passei a achar mais inspiradoras as atitudes abertas; atitudes profundamente democráticas e festivas, como a de Michel de Montaigne, por exemplo: “Meu modelo essencial é adequado à comunicação e à revelação. Sou aberto, à vista de todos, nascido para a companhia e a amizade”.
O ensaísta francês – conta Sarah Bakewell em seu excepcional e muito recomendável ‘Como viver ou uma vida com Montaigne’ – adorava se misturar com os outros, e sabe-se que conversar com o vizinho ou com o visitante estrangeiro era algo que apreciava com gosto especial. Não era portanto estranho que, estando a dialogar, o fizesse também com os clássicos, e que citações textuais destes se encontrassem inscritas nas vigas do teto do torreão em que ele trabalhava e de onde, em animada palestra com seus autores preferidos, mostrou-se convencido de que “relaxamento e cortesia”, o que chamava de “uma sabedoria alegre”, ajudavam a tornar a vida mais tolerável e a adotar uma melhor postura diante do mundo.
A terceira atitude é a de quem se irmana com o silêncio inexorável ao qual tudo se encaminha. Esta atitude é muito bem resumida em ‘Adeus’, o poema em que Rimbaud conta que, tendo ardido depressa demais, busca já seu próprio outono e o silêncio. “Busquei inventar flores novas, astros novos, carnes novas, idiomas novos. Julguei ter poderes sobrenaturais. Agora, devo sepultar minha imaginação e minhas lembranças!”, diz, e parece já nos dar as costas, como se quisesse fechar a mala com que viajará à Abissínia. Não muito tempo depois, completaria com estas palavras sua despedida: Maitenant je puis dire que l’art est une sottise (Agora posso dizer que a arte é uma estupidez). Mas naturalmente, querido Rimbaud: é claro que a literatura, como toda forma de arte, é uma estupidez. No entanto, sem a arte a vida não teria muito sabor, talvez nem mesmo sentido. Além do mais, a estupidez da arte não passa da demonstração mais simples de que a vida não basta. E por isso continuamos a falar dela, às vezes só para dialogar sobre a melhor forma de vivê-la.
Faltou dizer que às vezes o diálogo fica tão bom que precisa dar lugar ao monólogo. Um dia quem sabe eu respondo; por enquanto só leio, feliz.
3 Comentários
Eu também li feliz, e ele é mesmo isso tudo de bom, esse villa-matas,
abraço, clara
Vila-Matas é mestre. Brigado pela tradução (me embanano muito com o espanhol).
Abraço.
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