Sempre recusei convites para ser jurado de concursos literários (a brincadeira da Copa de Literatura Brasileira era até agora a única exceção). No fim do ano passado, porém, por razões de amizade, disse sim a uma dessas propostas e logo me vi enfiado até o pescoço na tarefa de ler, e ler criteriosamente, quase mil contos em menos de dois meses. A experiência não é algo que eu deseje a ninguém, nem a – eventuais, ainda que ignorados – inimigos.
Das coisas que esse trabalho tem me feito pensar, a mais inquietante é uma espécie de equivalente literário do Princípio da Incerteza de Heisenberg, aquele que enuncia a impossibilidade de medir ao mesmo tempo a velocidade e a posição de uma partícula subatômica, uma vez que a medição altera a realidade observada.
De modo análogo, poderíamos formular aqui o Princípio da Incerteza de Rodrigues, que enuncia a impossibilidade de medir talentos em concursos literários. Se você é um jurado ético e preocupado com a justiça dos seus pareceres, como não se angustiar com os efeitos danosos que exercem sobre sua fruição de leitor o ritmo acelerado e nada natural do trabalho, o embotamento advindo da pura quantidade e a irritação defensiva em que qualquer pessoa de bom senso se fecha quando é exposta a doses maciças de prosa de baixa qualidade?
Nada a ver com a angústia da subjetividade, esta é parte do jogo. Estamos falando de um Heisenberg em negativo: o que a medição altera aqui não é a realidade, mas o próprio observador. Nesse estado alterado de consciência, o pavor do jurado que leva seu trabalho a sério é o seguinte: “Se me cair nas mãos agora um novo Onetti, um Calvino ignoto, um Cheever da roça, serei capaz de reconhecê-lo?”
Faz-se todo o possível para que sim, claro. E com certeza há talentos genuínos no meio da multidão de vozes que me cerca no momento. Mas o que mais me surpreendeu nessa experiência foi descobrir que, diferentemente do que sempre me disseram, a grande maioria dos contos não é péssima, nem mesmo chega a ser de todo ruim. Os trabalhos que podem ser descartados após a leitura de umas poucas linhas são menos freqüentes do que eu imaginava. A maior parte se acotovela no enorme vestíbulo entre o muito ruim e o muito bom, exigindo do leitor profissional que chegue à última linha antes de dar seu veredito. É trabalho de gente que obviamente ama a literatura e leu a sua cota, não de paraquedistas.
O que pode ser uma péssima notícia para o Princípio da Incerteza de Rodrigues, mas faz parecer um pouco menos incerto o futuro literário do país.
9 Comentários
Sérgio, já fiz parte de diversas bancas, não exatamente de concursos literários, mas coisas semelhantes. Realmente é dureza quando se leva a sério, porque na medida que vão se somando os “lidos”, o comparativo vai se complicando.
Muito triste com você por não ter me dado retorno… 🙁
Augusto, li seus livros. Comentarei por email em breve. Um abraço.
Se me permite dizê-lo, tenho horror a quaisquer formas de brincadeiras, olimpíadas e competições com relação ao conhecimento. E isso em qualquer área: ciências, matemática, ciências humanas, literatura etc. Muitos fanáticos têm exatamente aí, na concorrência, sua primeira morada. Desse estágio, aliás, costumam passar à irreverência e ao deboche. Além disso, sinto asco por programas televisivos como o Soletrando, por exemplo, em que estudantes são expostos a milhões de pessoas sob um cenário tenebroso de simples vaias ou de nublados aplausos. Ora, ninguém sabe tudo, estamos sempre construindo nosso aprendizado. Entendo integralmente tua posição com relação às dificuldades inerentes ao julgamento de escritos num concurso literário, a começar, é claro, pelo volume de trabalho. Como modesto escritor, participei e até fui contemplado num concurso de contos. À época, fiz o exercício de colocar-me no lugar oposto. Assim, perguntava-me acerca dos dilemas dos jurados. Embora existam todos esses concursos, e quiçá em maior monta, vejo-os com distanciamento e desânimo. Parabéns pela matéria.
Deve ser estafante ler mil contos bons; mas deve ser devastador ler mil contos horrorosos.
Sai dessa, Sergio…
Hehe, obrigado pela preocupação, Patrícia, mas é tarde pra isso.
Interessante a sua observação,mais o pior é que dificilmente ouvimos falar dos célebres vencedores desses concursos.Já participei de alguns mas resolvi deixar tudo esquecido numa gaveta pois vejo exatamente o futuro escuro da literatura no brasil.
Gostaria de comentar que o Princípio da Incerteza, por não ser de fácil compreensão ao senso comum, está sujeito a interpretações errôneas em muitas circunstâncias de trabalho, ou mesmo de eventos comuns.
Pois generalizações forçadas são feitas, e ditas, em várias situações e mesmo em cursos ministrados por aí.
Tal posição pode ser melhor entendida aqui:
http://gatosepapos.blogspot.com/2011/03/principio-da-incerteza-de-heisenberg-e.html
Risos… Entendo bem o que é isso. Eu tentei fugir de ser jurado por vários anos. Acabei sucumbindo ao canto da sereia e passei pela mesma experiência que você.
Felizmente não me procuram com mesma frequência…
Valdeck Almeida de Jesus
http://www.galinhapulando.com
Primeiramente tenha um bom dia amigo…Não posso comentar muito até porque não tenho conhecimento a altura…Mas aproveito mesmo este espaço é para dar_lhe os meus parabens e dizer que Deus nos dá a missão de acordo com nossa competencia, e voce foi escolhido devido a essa competencia.Parabens de coração desse simples leitor,que Deus te abençoe sempre…