Esbarrei dia desses numa lista de dez conselhos – aqui, em espanhol – do romancista americano Richard Ford (foto) a jovens escritores e fiquei matutando sobre esse subgênero das dicas sobre o fazer literário, que sempre mereceu atenção do Todoprosa em seus quase nove anos de história.
Embora sejam discutíveis em princípio, claro, simplesmente por serem conselhos, os de Ford têm lá sua graça. O que neles mais chamou minha atenção foi o fato de serem, em sua maioria, toques de vida, de comportamento, de postura diante do trabalho – e não de técnica, estilo, relação com as palavras, condução do ritmo narrativo ou composição dos personagens. Acredito que isso os faça mais úteis.
“Case-se com alguém que ame e que ache uma boa ideia você ser escritor”, recomenda Ford já na abertura do decálogo. E mais à frente: “Não discuta com sua mulher”; “Não deseje mal a seus colegas”; “Tente pensar no sucesso dos outros como um estímulo para você”. O que pode parecer uma cartilha de bom-mocismo entra também por terreno íntimo e polêmico: “Não tenha filhos”. Puxa, será que um escritor com filhos deve desistir da carreira? Eu tenho dois.
É claro que ninguém deve tomar ao pé da letra as dicas de Ford ou de qualquer outro. Sim, é possível ter uma prole extensa e escrever, viver às turras com o cônjuge e escrever, roer o pé da escrivaninha quando um colega faz sucesso e escrever. Não fosse assim, a maior parte da literatura universal não existiria.
No entanto, os toques do escritor americano apontam para problemas que são comuns a quem escreve e que precisam ser equacionados de alguma forma. Como dedicar o máximo de tempo e energia ao ofício? Como não deixar que a simples necessidade de subsistência engolfe tudo? Como manter a concentração? Como impedir que o ressentimento, o insidioso ressentimento, o corroa por dentro até não sobrar nada?
Se os toques pessoais nunca terão valor universal, é um argumento facilmente defensável o de que, sendo a liberdade artística o próprio ar que o escritor respira, diretrizes técnicas podem cruzar quando menos se espera a fronteira que separa o ensinamento do cerceamento.
“Evite as frases longas e o vocabulário rebuscado”, dirá, por exemplo, algum veterano sensato e cheio de boas intenções. Cheio também, convenhamos, de razão. Como ele poderia imaginar que estará matando no berço um genial neobarroco futurista?
Não à toa, um sério candidato a melhor toque literário de todos os tempos é aquele brincalhão de Somerset Maugham: “Existem três regras para escrever ficção. Infelizmente, ninguém sabe quais são elas”.
Preparei abaixo uma seleção de dez conselhos literários do tipo “de vida” – mais do que “de literatura” – que me parecem ter valor. Um punhado deles me foi útil em algum momento da carreira. Nenhum mais do que o primeiro da lista, que pouco tempo atrás mantive por mais de um ano ao alcance dos olhos, impresso em corpo 36 e colado na parede ao lado do monitor, enquanto tentava chegar ao fim de um projeto enrolado que tinha começado dezoito anos antes, chamado “O drible”.
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1. “Termine o que está escrevendo. O que quer que tenha que fazer para terminar, termine.” (Neil Gaiman)
2. “Planejar escrever não é escrever. Traçar o projeto de um livro não é escrever. Pesquisar não é escrever. Falar com as pessoas sobre o que você está fazendo, nada disso é escrever. Escrever é escrever.” (E.L. Doctorow)
3. “Escrever é tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos.” (Marguerite Duras)
4. “Um escritor nunca tira férias. Para ele, a vida consiste ora em escrever, ora em pensar no que vai escrever.” (Eugene Ionesco)
5. “A melhor hora de planejar um livro é enquanto se lava a louça.” (Agatha Christie)
6. “Evite panelinhas, grupos, gangues. A presença de uma turma não tornará seu texto melhor do que ele é.” (Zadie Smith)
7. “Não romantize sua ‘vocação’. Não existe nada parecido com uma ‘vida de escritor’. A única coisa importante é o que você deixa na página.” (Zadie Smith)
8. “Se você sabe mesmo escrever, não precisa usar roupas engraçadas.” (James Dickey)
9. “Mantenha-se humano! Veja pessoas, vá a lugares, beba, se sentir vontade.” (Henry Miller)
10. “A literatura está apinhada de destroços de gente que se importou além do razoável com a opinião dos outros.” (Virginia Woolf)
4 Comentários
Muito obrigado, Sérgio!
Essa coluna é ótima!
Abs
Gostei especialmente do nono mandamento do decálogo. Com uma sutil alteração: em vez de “beba, se sentir vontade”, “coma coxinha, se sentir vontade”. Mas, falando sério agora, a recomendação número seis é frequentemente contrariada por muitos dos que dão conselhos aos novos escritores. A sugestão é exatamente o oposto: “não se isole, circule nos meios literários, frequente feiras de livros e festivais, faça parte de uma turma”.
Grande Sérgio. Parabéns pelo trabalho aqui no Blog. Acompanho sempre, embora nem sempre comente nas postagens. Tomo a liberdade, aqui, de lhe fazer uma pergunta: você pretende publicar alguma resenha sobre Graça Infinita, do David Foster Wallace. Estou adorando o livro e gostaria de ler sua opinião a respeito dele e do autor, a quem admiro muito.
Grande abraço.
Esta é uma verdade…. rsrs
A literatura está apinhada de destroços de gente que se importou além do razoável com a opinião dos outros.” (Virginia Woolf