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Conto de carnaval: A máscara

18/02/2007

Todo cuidado é pouco com essa máscara, viu, Vi? Não, sua boba, empresto com prazer porque você sabe que é a minha neta preferida, e além disso tem outras coisas, sinto um arrepio só de imaginar que a minha máscara negra veneziana nariguda vai se soltar por essas ruas outra vez depois de meio século guardada numa caixa de chapéu com a tampa afundada, devia andar triste, a coitadinha, olha só esses olhos vazados caídos, tão merencórios. Ah, esses olhinhos viram coisa, Vi. Claro que não era como agora, era melhor, era pior. Diferente: eu nunca fui de folia e nem podia ser, sempre fui certinha. Seu avô, sim, aquele se esbodegava inteiro, saía no sábado pra voltar na quarta-feira que nem na música da camisa listrada, só que a fantasia dele, infalível, era de arlequim – conhece a música da camisa listrada? Ainda toca isso? Em vez de tomar chá com torrada ele tomou parati, não, imagine se vai tocar. Agora é diferente, pior, melhor, depende. Por exemplo, quando você casar, duvido que agüente o que eu agüentei. Não agüenta, Vi, mudou demais. Para melhor, nesse ponto eu acho que foi para muito melhor, porque se o seu marido um dia sair por aí com um canivete no cinto e um pandeiro na mão, sossega leão e tal, eu acho que você pode até aceitar, mas conhecendo você como eu conheço, eu sei que mal a porta bateu você vai sair também, você pra lá, eu pra cá, até quarta-feira, lalaiá, lalaiá. Sossega leoa – vai ou não vai? Pois eu acho que está certíssimo, querida, nós é que éramos bobas no meu tempo, eu era. Engolia, agüentava, chorava no travesseiro, noite em cima de noite perdendo o viço. Uma mulher guardada numa caixa de chapéu com a tampa afundada, cheiro de naftalina, ih, estou melosa, estou dramática, mas era assim. Não admira que os olhinhos fossem ficando merencórios, que o marido perdesse o interesse e procurasse cada vez mais passatempos, depois vinha cair na cama sem tirar nem o sapato. O seu avô, por exemplo: um homem bom, trabalhador, mas um patriarcão de antigamente, acho que um dos últimos. Pisada firme, vozeirão, chicote na cinta, chicote é maneira de dizer, que no Rio de 1950 ninguém usava chicote, mas você entende. Sua mãe não era nascida ainda, os outros quatro sim, aquela escadinha, e foi aí que ele me prometeu. O baile de máscaras do sábado de carnaval no casarão da Glorinha Pissaruçuba na Praia do Flamengo – não tinha programa mais cintilante, jóia social mais cobiçada naquele tempo. Era diferente demais, melhor, pior, eu não disse? Melhor, Vi, nesse caso era melhor porque nós íamos pela primeira vez no baile da Glorinha Pissaraçuba, ah, você tinha que ver a minha felicidade! A máscara veneziana eu comprei na Rua do Ouvidor para a ocasião, não foi barata, negra porque assim ficava mais discreto, mais digno, seu avô aconselhou. Aconselhou? Essa é boa, aconselhou nada, mandou, pois é. O vestido ia ser um verde brilhoso de festa que já começava a encardir no armário, mandei tirar, lavar, quarar, engomar, chegou o dia e eu fui fazer o cabelo, as crianças excitadas só de ver a minha felicidade, mamãe vai sambar, vai sambar, sambar, e quando chegou a hora, Vi – sambei, justamente. Seu avô ligou da rua dizendo que a gente não ia mais no baile de máscaras, imprevistos, ele falou, contratempos, uma palavra assim. Eu sabia o tipo de contratempo que ele gostava, aquele que o cabelo não nega mas em compensação a cor não pega, feito dizia o Lamartine. Seu avô não era fácil e a gente era boba demais, triste e amargurada, não tinha essa sabedoria das mulheres de hoje, não tinha o salve o prazer, salve o prazer. Me tranquei no quarto aquele sábado, os olhinhos merencórios dessa máscara negra aí, essa mesma, ficaram me olhando em cima da cama um tempão. Foi a Conceição que pôs as crianças para dormir, apagou a casa toda, você não teve tempo de conhecer a Conceição, até hoje eu sinto saudade. Ela cuidou de tudo enquanto eu ficava sentada na cama de vestido verde e laquê armado ouvindo as risadas, gritinhos, gente batendo na lata, os barulhos todos de carnaval que você conhece, isso não mudou tanto, ainda é assim. Eu nunca fui de folia e nem podia ser, sempre fui certinha, e quando cheguei na esquina de máscara e vestido verde e vi um grupo de clóvis me olhando do outro lado da rua, me veio um pânico doido, quase dei meia volta. Nem sei como continuei andando, marcando o passo com o meu coração, acho que eu corria. Não lembro de ter entrado no Cadillac que o pierrô de porre parou do meu lado, me deu um branco mas eu sabia que, tendo entrado ou não, a verdade era que eu estava dentro dele agora, sentada no banco do carona com a cabeça girando e a mão do pierrô no meu joelho enquanto a estradinha cheia de curvas passava por nós, o mar rugindo lá embaixo, reconheci a Niemeyer. Quem é você, diga logo que eu quero saber, ele me disse que se chamava Jorge, depois Álvaro, mais tarde Toninho, e com o céu começando a clarear já tinha virado Camilo, Ciro, Ismael. Eu também não pronunciei o nosso nome, Vi, e a máscara negra nariguda eu só tirei enquanto a escuridão nos protegia, o pierrô não soube que eu me chamava Elvira. Mas nunca vou esquecer os olhos verdes dele, aqueles não tinham nada de merencórios, eram da cor do mar de São Conrado quando amanhece num domingo de carnaval – idênticos aos que me olham agora da sua cara espantada, Vi, isso também não mudou, e no fim daquele ano sua mãe nasceu.

23 Comentários

  • João Paulo 18/02/2007em08:11

    Falar o que?
    Quem sabe escreve, e quem não sabe, lê.
    (até rimou)

    Imprimindo.

  • Saint-Clair Stockler 18/02/2007em09:27

    Conto maravilhoso! Uma lufada de ar fresco nessa minha manhã merencória de domingo de Carnaval… Ainda se usa dar parabéns?

  • Sérgio Rodrigues 18/02/2007em12:07

    Valeu, JP e SC. Abraços e bom carnaval.

  • Pedro 18/02/2007em13:33

    Além de muito bom, o conto me lembrou que ontem, no melhor bloco do qual tomei parte neste carnaval, a atriz Mel Lisboa bailava com seus belos olhos verdes por trás de uma máscara veneziana. Bela visão. A literatura e a vida tem dessas coincidências.

    Pedro

  • Cláudio Soares 18/02/2007em14:23

    Ótimo conto Sérgio. O “declínio do patriarcado” na época exata do ano. Meus parabéns! Sabe, estou aqui na batalha tb. Aproveitando o carnaval para descansar e escrever um pouco. Mas, o conto que está saindo do lado de cá (em breve estará lá na “Última Biblioteca”) é um conto fantástico. Anuncio aqui em primeira mão. O título (temporário) é “La Sindone”. Um forte abraço!

  • luizgusmao 18/02/2007em14:38

    mto legal! fianl surpresa e td. mas já q pôs a citação do autran doutrado sobre a importância de saber o nome das coisas: as máscaras venezianas narigudas têm nome – são os ‘nasoni’.

  • Pedro Curiango 18/02/2007em20:31

    Para o escritor saber DEMAIS o nome das coisas pode virar empecilho. Coelho Neto sabia o nome de tudo; hoje é o escritor brasileiro mais difícil de se ler.

  • BA 18/02/2007em23:21

    A mãe da Vi com certeza era de escorpião. Pq todos somos filhos da folia. Basta fazer as contas…
    🙂

  • Malice 19/02/2007em12:52

    Lindo! Parabéns!

  • Clarice 19/02/2007em17:20

    Melhor, pior?
    Também não sei, Sérgio.
    Só sei que você acabou de ganhar uma leitora. Dois textos que gosto. A curiosidade bate.
    Entrando no universo feminino assim?
    E outros universos tb em um conto só.
    Ai! meu bolso.

  • Lorena Suppa 19/02/2007em21:47

    Sérgio, te admiro cada vez mais! Sou fã de contos e crônicas, e não é que você nos presenteou nesse Carnaval?

  • carlos gilberto triel 21/02/2007em08:41

    Assim como a Clarice, sou o seu mais novo leitor.

  • Daniel Brazil 21/02/2007em12:47

    Garantiu a vaga, com méritos, numa futura antologia dos melhores contos carnavalescos.

  • Klaus 22/02/2007em14:39

    Sergio, fabuloso seu conto. Acho que a primeira ficção sua que leio. Estou meio atordoado ainda. Sensacional o jogo de palavras (“Vi”, “Elvira”). Adorei a narrativa.

    Onde eu acho mais disso aí, hein?

    Grande abraço!

  • André 22/02/2007em14:45

    Adorei!! Muito bom, evoluindo saborosamente pelo carnaval.

    Parabéns!

  • Sérgio Rodrigues 22/02/2007em15:11

    Obrigado, Klaus – e André, Clarice, Lorena e todo mundo que houve por bem deixar inteiro o meu telhado de vidro. Onde encontrar mais disso? Publiquei um livro de contos chamado “O homem que matou o escritor” (Objetiva, 2000). Está na segunda edição e ainda é encontrável – a esta altura, com muito mais facilidade em livrarias virtuais do que nas reais. “A máscara” pertence a um livro futuro, sem previsão de lançamento. (Do meu romance recém-lançado nem vou falar, já tenho falado mais do que gostaria.)

    Abraços a todos.

  • Éd Lascar 22/02/2007em20:36

    Li o conto hoje, um tanto atrasado. Adorei este recurso de um discurso despretensioso de uma vó que não se contém e vai até às últimas consequências, se revelando adúltera !
    Incontrolável! Eletrizante! E, para a netinha: Assombroso!
    :o)

  • gaivera 26/02/2007em13:00

    Mais atrasada tô eu! Só hoje tô voltando não tanto pela folga do carnaval mas por uma gripe terrível que me pegou… Lindo conto, um bálsamo nas leituras desta época, provando que existe “vida inteligente neste país” – ainda mais entre uma declaração da Luana Piovani, outra bobagem da Susana Vieira e outras menos votadas, que era o que havia pra ler nos jornais.

  • Inah 28/02/2007em10:48

    Parabéns Sérgio.Ótimo conto.Escrevi um de carnaval intitulado-O BAILE-se tiver interesse encaminharei.Apenas discordo do trecho-o avô telefonou dizendo não ir mais NO BAILE,não seria AO Baile?

  • Sérgio Rodrigues 28/02/2007em11:12

    Obrigado, Inah. É “no” mesmo, como fala quase todo mundo no Brasil. Pode encaminhar o conto por email. Um abraço.

  • sérgio de castro pinto 03/03/2007em22:48

    excelente conto. vou levá-lo à sala de aula.
    sérgio de castro pinto

  • Inah Lins de Albuquerque 07/03/2007em15:44

    Parabéns Sérgio,
    O seu conto é extraordinário.Tenho um sobre carnaval e a temática é a máscara,intitulado_ O BAILE_Quando a coragem chegar encaminharei para você.Grata pelo belo presente de Carnaval.
    Inah

  • Pulguinha 11/03/2007em01:36

    Que delícia!