Achei honesto o artigo de Schulz, ainda que não concorde com ele em seu ponto mais fundamental: considero ‘Gatsby’ um belo livro. No entanto, como Sacks, também fiquei incomodado com as tentativas generalizadas de desqualificar a crítica de antemão, como se a ousadia de falar mal de uma obra canônica não pudesse obedecer a nenhuma outra motivação além daquele impulso baixo, a “vontade de aparecer” – que em sua versão contemporânea pode ser traduzida como “fome de cliques”.
Sim, é verdade que jogar pedras em ídolos é um esporte praticado por grande número de mediocridades em busca de quinze minutos de fama. Também é verdade que o mundo digital multiplicou as oportunidades para esse tipo de vandalismo intelectual. No entanto, no momento em que tais constatações nos levam a situar certos nomes acima da crítica, a inteligência paga um preço alto demais.
Por mais que dê trabalho, a lisura do debate vai sempre nos obrigar a examinar a qualidade das pedras, uma por uma, antes de decidir se quem as lança é um palhaço ou um visionário. Ou mesmo – em algum ponto no meio do caminho – um daqueles espíritos revoltados que, errando mais do que acertam, ainda assim merecem ser ouvidos.
Duas pedras curiosas coletadas por Sacks:
Martin Amis sobre a obra-prima de Miguel de Cervantes: “Ler o ‘Dom Quixote’ pode ser comparado a receber como hóspede o mais intratável dos seus parentes mais velhos, com todas as suas pegadinhas, hábitos pouco higiênicos, reminiscências incontroláveis e amigos horríveis”.
Anthony Burgess sobre “Os miseráveis”: “Você não está ciente da chatice, das irrelevâncias, do tom de pregação, do sentimentalismo, das improbabilidades, do melodrama?”
A essas pedradas acrescento outra por minha conta: Roddy Doyle dizendo que “Ulisses”, de James Joyce, “teria melhorado com uma boa edição”.
Os três casos têm algo em comum: os autores das críticas não podem ser chamados de fanfarrões anônimos, mas, para a história da literatura, são nomes muito menores do que seus alvos. E daí? Cuspir no Grand Canyon, afinal, é como desafiar a morte, insultar Deus, amaldiçoar a tempestade em alto-mar, condenar a civilização como um todo. O cara vai sempre perder no fim, mas pode haver grandeza em seu gesto de recusa.
10 Comentários
Sérgio, uma ajudinha:
Eu lembro de ter lido um artigo (brasileiro, talvez blog) sobre o Grande Gatsby mais ou menos 1 ano atrás.
Falava do futuro filme, da nova tradução da Vanessa Barbara, tinha um ponto de vista bem inovador sobre o enredo.
Queria ler de novo, só que não consigo mais encontrá-lo ou lembrar da fonte, kkkkk
Isso ressoa de algum modo na sua mente bem-informada? Me ajude 🙂
Lamento, André, mas não toca nenhuma campainha.
Para variar, excelente texto, Sérgio. Essa questão de criticar “para aparecer” sempre me incomodou. Por outro lado, também acho ridículo elogiar qualquer coisa (no caso, livros)porque todos o fazem. Não gostei de “O Vermelho e o Negro” e nem de “Moby Dick”, mas já li o suficiente sobre ambos para entender porque tantos os amam.
Uma das coisas que mais me incomoda na crítica literária em geral(e nos blogs, cadernos literários, etc) são aqueles que não conseguem disfarçar a intenção egocêntrica por trás de certas críticas negativas. Dá até para imaginar: a sombrancelha levantada, o sorriso irônico e antevisão do “impacto” ao soltar o petardo insincero.
Poderia desfiar aqui uma lista de “unanimidades”, literárias ou não, que não me apetecem. Mas logo me vem à cabeça o prazer que se tem aqui no Brasil de se pixar o sucesso, seja de quem for, apenas por esporte. Então, deixa pra lá.
Sérgio,
Lá vou eu incorrer de novo na heresia: a mesma pedrada que você diz ter sido lançada no Ulisses pelo Roddy Doyle, eu a arremessaria no Grande Sertão: Veredas. O livro é bom, mas seria muito melhor se tivesse sido submetido à tesoura severa de um bom editor.
Sou uma mediocridade, reconheço, mas não procuro a esmola de alguns minutos de fama.
Algo curioso que constatei: posso falar mal de Shakespeare, de Cervantes, de Tolstoi, de James Joyce; posso reclamar do Machado de Assis, do Graciliano Ramos, do Jorge Amado. Ninguém me repreende por isso. Mas se ouso criticar o Guimarães Rosa, sou mais espancado que o Judas em véspera de Páscoa.
Vale
Sérgio, gosto muito do ‘Gatsby’, que considero um dos grandes livros do século passado. Sobre o texto do Sacks, penso que se refere a um velho impasse: a sempre complicada questão de gosto. Tanta coisa por aí que chamam de “gênio” e “essencial” mas que classifico como “engodo” e “superestimado”. E vice-versa. Pouco tempo depois do lançamento de ‘Gatsby’, o severo H.L. Mencken escreveu uma resenha um tanto cética: http://fitzgerald.narod.ru/critics-eng/mencken-gg.html.
O iconoclasta é um tipo fundamental.
Muito bom o último parágrafo. Há algumas críticas bem curiosas. Se bem lembro, Goethe detestava Dante, Paul Valéry achava chata a Odisseia, Nabokov criticou bastante Dostoiévski, T S Eliot disse que Hamlet era a Monalisa da literatura, etc. E mesmo alguns elogios são suspeitos. O próprio Eliot, dizem por aí, talvez nem tenha lido todo o Ulysses, mas o exaltou mesmo assim. Este último, aliás, bem pode ter melhorado com uma boa edição. Quem me fez gostar, embora não totalmente, de Ulysses, foram justamente alguns críticos. Quando tentei ler o livro pela primeira vez me senti enganado. Tinha a sensação de que estava diante de uma antologia de comentários de blogs.
Ótimo texto – escrevo no tablet so… Abraço
Obrigado de qualquer forma, Sérgio. Ainda estou à procura 🙂
Em defesa de Alice Munro | Todoprosa - VEJA.com