A informação (em inglês) é só uma curiosidade: a combalida Olivetti Lettera 32 em que o escritor americano Cormac McCarthy escreveu ao longo de quase 50 anos e cinco milhões de palavras será leiloada pela Christie’s com propósitos beneficentes nesta sexta-feira, com expectativa de sair por algo entre 15 mil e 20 mil dólares. Para mim, porém, a notícia tem sabor de madeleine.
Tenho em casa um modesto museu da máquina de escrever. Além da portátil Hermes 2000 que já comprei velhinha nos anos 1980, num antiquário, mas ainda cheguei a usar, conservo a pesada Remington que herdei de meu pai, na qual batuquei meus primeiros contos adolescentes, e desde o início deste ano a estrela da companhia: uma restauradíssima Olivetti Lexikon 80 (foto ao lado), maravilha dos anos 1950 que, naquele clima de balanço universal da virada do milênio, foi eleita por um júri internacional de design a melhor máquina de escrever de todos os tempos. Mas não é essa glória mundana, ou não só ela, que a conduziu ao lugar de maior destaque no centro da sala: ao mesmo tempo sólida e macia, a Lexikon 80 era a máquina de linha na redação do velho “Jornal do Brasil” quando lá cheguei, em 1984, e na maior parte dos anos em que permaneci na casa, até ser desalojada pelo computador. Meus dedos nunca conheceram uma melhor.
Hoje, como eu disse, meu interesse é basicamente museológico. Não que minhas máquinas de escrever estejam inativas: meus filhos gostam de brincar com elas, intrigados com uma engenhoca que tem teclado pesado mas em compensação exibe o fantástico avanço tecnológico de, como observou minha filha quando tinha 7 anos, não precisar de impressora. Talvez haja nisso também um certo jogo de cena, numerito de escritor, embora – juro – isso nunca tivesse me ocorrido até ler essas linhas sagazes que o repórter Miguel Conde, do caderno “Prosa & Verso”, escreveu depois de me entrevistar em casa:
Uma velha máquina de escrever ocupa o centro do escritório de Sérgio Rodrigues na Gávea. Utilizada apenas nas brincadeiras ocasionais do filho do escritor, passa a maior parte do tempo cumprindo um duplo papel de peça de decoração e declaração de interesses. Exibida com destaque, é um anúncio tão ostensivo e, simultaneamente, anacrônico da ocupação de seu proprietário que parece também uma forma velada de autoironia. O visitante, no fim das contas, fica na dúvida: é a sério ou é piada? Uma questão que, não por acaso, os livros de Rodrigues levantam o tempo todo.
Bem, então que fique aqui declarado – se é que meu depoimento vale alguma coisa – que o negócio é sério e é piada. Eu sofreria como um condenado se fosse obrigado a trocar hoje o processador de texto por uma máquina de escrever, mas ela continua me assombrando com o fantasma de um tempo em que éramos obrigados a pensar mais antes de teclar a primeira letra e conspurcar a folha em branco – não fosse alguém, mais tarde, flagrar nossos tropeços textuais mal escondidos atrás de fileiras de xxxxx. O que ganhamos e o que perdemos nesse processo – porque o meio, óbvio, é mesmo a mensagem – é assunto profundo demais, opaco demais, além de provavelmente fútil. Não tem volta, pronto, acabou.
Ou talvez não tenha acabado de todo: convém não esquecer que falta nas máquinas de escrever a tecla Delete. Se a Sholes & Glidden de Mark Twain, a Underwood de Jack Kerouac e a Royal Quiet De Luxe de Ernest Hemingway pertencem à história da literatura, descubro no mesmo texto sobre a Olivetti de McCarthy que Don DeLillo e Will Self cultivam até hoje o ato primitivo de escrever num instrumento barulhento cujos braços tendem a se enroscar uns nos outros, exigindo intervenção manual. Acabei indo desencavar um artigo lido mais de dois anos atrás na “New Yorker”, escrito por Joan Acocella a propósito do livro The iron whim: a fragmented history of the typewriter, de Darren Wershler-Henry. Além de informar que a máquina de escrever não teve um inventor, mas uma série de inventores numa cadeia de aprimoramento tecnológico que se estendeu do século 18 ao 19, o texto de Acocella traz este belo trecho de um romance de Muriel Spark em que a máquina de escrever é – como numa bad trip de William Burroughs – uma espécie de máquina do mundo:
De modo geral, ela não acreditava que houvesse qualquer problema com Helena.
Nesse exato instante ouviu o som de uma máquina de escrever. Parecia vir do outro lado da parede à sua esquerda. Ele cessou, e foi imediatamente seguido de uma voz que sublinhava seus próprios pensamentos. Dizia: “De modo geral, ela não acreditava que houvesse qualquer problema com Helena”.
15 Comentários
“(…) um tempo em que éramos obrigados a pensar mais antes de teclar a primeira letra e conspurcar a folha em branco (…)”
Caro Sérgio, aqui você tocou no ponto nevrálgico do admirável mundo novo que está se abrindo com o avanço da tecnologia de informação: a leviandade da escrita tem alcançado dimensão inimaginável, jamais vista na história humana. É inútil e idiota lutar pela volta do passado; é sobretudo estúpido abrir mão das maravilhas proporcionadas pela internet. Mas que cada vez mais a insensatez, a tolice e a frivolidade campeiam, não tenho dúvida alguma.
P.S.: Fiz curso de datilografia, sei digitar com todos os dedos da mão, sem olhar o teclado; porém, não sinto a menor falta desse monstrengo desajeitado que é a máquina de escrever. Mil vezes prefiro, por pura ostentação, minha caneta tinteiro Parker, que borra o papel e suja os dedos e da qual só sai garatujas, completamente ilegíveis.
Adeus a maquina de escrever de carona os telhados já vão de troco
E pensar que dentro de pouco tempo nem os teclados dos micros será necessário usar
Sem contar que ainda os novos equipamentos farão as correções na gente, ou seja, quem não sabe só vai poder ir adiante, se aprender
E olha que programa ninguém enrola, porque tudo vai virar no maior vídeo gama do futuro, chegando a nosso favor com os super professores
Porque o resumo da tecnologia e a porca e o parafuso, ou o parafuso e a forca precisa da precisão da doce na medida certa nos bancos de dados sem distorção
Ora, ora porque aposentr a maquina de escrever. Tenho uma Olivetti que me serve até hoje. Tenho 85 anos e eu subscrevo meus envelopes na minha Olivetti. e ela sente-se orgulhosa de trabalhar comigo sabem porque ? porque eu detesto o computador apesar de ter de conviver com o mesmo. Assim salve a Olivetti e que vamos fazer salve tambem o terrivel computador – Salvador Calheiros
Sou de uma geração que só brincou de escrever em máquinas, mas ainda assim, filho de um escrivão, convivi demais com elas. Pelas histórias que me contam, a datilogriafia foi um importante meio de ascenção social.
A gente pobre botava o filho pra aprender a batucar nas letrinhas e ele logo conseguia entrar num escritório ou repartição. Dali pra frente, o céu era o limite ( ou não).
Uma vez até escrevi um conto(???) sobre as máquinas…
http://moinhomeu.blogspot.com/search?q=m%C3%A1quina
Abs..
Pedro, gostei. Mas eu chamaria de crônica. Abraço.
A velha máquina de escrever pode se transformar em poesia, ela nos diz algo, alguém pode reagir com um riso ao vê-la, talvez na estante da sala, vejo que ainda tem os que preferem escrever as vezes, com aquelas canetas que algum disse “que pra a termos muitos morrem lá não sei aonde”, mas… a minha eu não vendo.
A fluidez do texto, parece variar entre algumas pessoas,conforme o istrumento de escrita utilizado. Há até quem prefira uma bic e o velho papel almaço (também célere , a caminho do museu) …
Domingo passado, durante uma mesa redonda numa livraria Cultura em ocasião do lançamento da Coleção Imaginários, falamos também sobre isso. Sou do tempo em que batucava em teclados pesados, carros barulhentos, acompanhado de fitas corretivas, (tenho ainda uma lettera 32) e guardo uma grande nostalgia dessa época. Mas hoje, se tudo nos faltasse e eu fosse obrigado a voltar à velha máquina de escrever (mas sem impressora…rs), acho que entraria em profunda depressão.
Sérgio, se as velhas máquinas de escrever trazem muito do romantismo de outros tempos, elas também escangalharam muito com os dedos e os tendões de muita gente boa por aí. Fora o texto que está primoroso – fui redator de propaganda muito tempo e um texto assim, charmoso, cheio de bossa, deixa a gente com uma inveja danada… – fiz questão de lembrar desse pequeno detalhe porque ele também acompanha o dia-a-dia dos que levam a vida martelando os teclados. Em compensação, hoje, esses computadores se são velozes e seus teclados macios, por outro lado nem sempre são confiáveis. Haja saco para aguentá-los quando não querem nos obedecer!! São os ônus que provavelmente meu filhinho de um ano não vai mais encontrar pela frente quando tiver que batucar o samba da vida dele.
Valeu, caro Marcelo. Mas, curioso, os problemas de L.E.R. que eu tive – e os que vi pessoas próximas terem – apareceram já na fase do computador, nos anos 90. No tempo da máquina de escrever, minha memória é de todo mundo saudável. Um ortopedista me disse certa vez que o esforço muscular exigido pela máquina era benéfico, prevenia as lesões. Falando nisso, é ignorância minha ou esse tipo de problema parece ter saído de moda?
Olá, Sérgio,
Participei do FEMUP de Paranavaí, em 87, na categoria conto e tirei o primeiro lugar. Eu havia datilografado meu conto, reescrevendo-o, quinze vezes. Ufa! Chegando no Paraná, minha tia me disse: você ganhou esse prêmio no mole.
Falando sobre máquina de escrever, faltou mencionar Ana Cristina Cesar. Lendo seus poemas dá pra imaginar os dedos ágeis dela tamborilando na máquina.
Abraços,
Jura em Cy bemol.
Um dos grandes arrependimentos que eu tenho foi ter me desfeito da Olivetti com tipos manuscritos que era do meu pai. Pequena, verdinha, até que leve… Já era.
Caríssimo Sérgio, uma dos coisas que mais me estimulam a escrever é o bom texto dos escritores que eu leio. Sempre foi assim. A inveja, acho que saudável, acaba sendo um propulsor a mais para o meu próprio o meu texto. Ela, a inveja, sempre ficou entre a admiração e a vontade de imitar o ídolo.
Eu também tive lesões sérias mas foi por causa da máquina de escrever, uma Olympia. O problema de ter saído da moda, acredito, é por causa dos teclados mais macios do computador. Um abraço e boa intermediação no Goethe!!
Você falou sobre pensar antes de escrever e eu fico imaginando Dante, Cervantes, Shakespeare escrevendo quando o papel devia ser um produto muito escasso. Será que eles escreviam a lápis ou a tinta com penas de ganso? Será que podiam se dar ao luxo de apagar, rabiscar ou refazer o texto quantas vezes fossem necessárias?
A verdadeira máquina de escrever é o cérebro | Todoprosa - VEJA.com