O problema de Demóstenes Bastião era que ele escrevia em preto-e-branco. Não num preto-e-branco estiloso ou expressionista. Num preto-e-branco cinza, cinza-e-branco, cinza-e-cinza. Chiadeira das mais invernosas, sua prosa era mais cacete que a palavra “cacete” usada como adjetivo, mais morrinha que um daqueles lençóis de vapor que uma vez por década envelopam o mundo por semanas, meses, sem chover nem sair de cima, até os canários virarem limo e os orgasmos, perebas. Desprovida de quaisquer efeitos poéticos, dramáticos ou cômicos que soassem minimamente autênticos, a prosa de Demóstenes Bastião era sem lustro, sem lastro, sem risco, sem gosto, sem gusto. Nada iluminava, nada movia. Movia-se, só, e penosamente. Era como se desafiasse o leitor a cada advérbio preciosista, a cada contorno de frase corretíssimo e vão: se você não desistir, não espere que desista eu. Renitente, isso não dá para negar que a escrita de Demóstenes Bastião fosse. Feito um vírus combalido que, de uma hora para a outra, ao descuido mais bobo, pode ser mortal. E aqui não se trata de metáfora, infelizmente. Consta que houve mesmo seis ou sete casos funestos. Está certo que o sujeito acabar de ler um livro de Demóstenes Bastião e morrer ali mesmo, olhos vidrados, duro na poltrona, podia ser só uma coincidência, vá lá, da primeira vez. Mas a repetição macabra deveria ter bastado para nos abrir os olhos.
9 Comentários
Uma espécie de “um bom livro deixa cicatrizes” só que do avesso! O nome do protagonista é, como sempre, uma atração à parte. Abss!
A piada mortal do Monty Python aplicada à literatura. Quando sair o livro, o “Sobrescritos” deixará de fazer parte da rotina desse Blog?
Dúvida rápida: “gusto” é a palavra do espanhol?
…pois é D. Bastião deve ser primo de Mr. Paul Rabbit and Mr. Dan Brown.
…na cartilha de Serapião (encontrada junta a tumba da Marquesa de Santos) consta a ausência de nove páginas.
…digitais apressadas de D.Bastião consta do laudo documentocóspico dos peritros do Instituto Cético Legal – ICL.
Sérgio, a little bit off-topic:
Em um artigo de jan/2008 [ //ow.ly/2NM ] lembrei a [agora quase histórica] frase que Bill Gates proferiu em maio/2007: “A leitura será completamente on line”.
Anteontem, durante a CES 2009, Steve Ballmer e Janet Galore, da Microsoft, apresentaram o protótipo [já funcional] de um dispositivo de leitura/escrita revolucionário por diversos motivos: a tela é qs uma folha de papel de tão flexível; o conteúdo é integrável com o que estiver acontecendo ao redor do leitor [ou seja usa o poder das tecnologias wireless e redes sociais dentro da obra]; o conteúdo pode ser resumido em “mind maps” [inclui análise semântica por software, ou seja, o computador também lê o texto em linguagem natural]; inclui recursos de “machine translation”; entre outros recursos.
O vídeo da apresentação está em //www.youtube.com/watch?v=regenEAuG8Q .
Imaginemos agora a literatura levando em consideração estes recursos…
Se Demóstenes Bastião se candidata à ABL, é eleito por aclamação!
Passo por aqui e sempre saio leve, uma cura para o enfado do dia. Parabéns pelo “Sobrescritos”! Aguardo ansiosamente pelo livro.
Autoconsciência é isso aí…
Parece que houveram cerca de sete óbitos de pessoas que leram a prosa dele.