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Da arte de procurar no lugar errado

12/04/2014

philip rothNas entrevistas que tenho dado sobre “O drible”, meu romance mais recente, é comum que me perguntem – em geral de modo positivo, com admiração – sobre como cheguei à tese de que o estilo brasileiro de jogar futebol só se tornou o que é devido à ajuda involuntária dos velhos narradores de rádio, que com sua mania de embelezar exageradamente os jogos, fazendo “qualquer pelada chinfrim disputada em câmera lenta por perebas com barriga d’água” parecer “cheia de som e fúria”, obrigaram os atletas a fazer “um esforço sobre-humano” em campo para ficar à altura de suas mentiras.

Não é tão simples responder a essa pergunta. Em primeiro lugar a tese não é minha: quem a expõe com entusiasmo, “parecendo satisfeito consigo mesmo”, é Murilo Filho, um dos personagens principais de “O drible”. Murilo é um velho e famoso cronista esportivo que, à beira da morte, busca se reaproximar de seu único filho, Neto, com quem brigou há um quarto de século. Trata-se de um excêntrico que Neto suspeita estar gagá e, mais do que isso, um personagem de princípios morais duvidosos (digamos assim, para evitar spoilers). Duvido que algum autor se sentisse confortável de escalar tal figura como porta-voz de suas ideias.

Isso não quer dizer que eu renegue a argumentação de Murilo. Acho a tese do “fermento radiofônico da mentira” engenhosa e divertida. Chego a compartilhar de modo vicário da satisfação do velho cronista com sua autoria. É só. Não sei se chego a considerá-la propriamente plausível e certamente não a sustentaria num texto ensaístico, que exige uma maior responsabilidade intelectual do autor. Ocorre que “O drible” não é um ensaio, é um romance. Alguma irresponsabilidade intelectual – a disposição de correr riscos enormes, saltar de um pensamento a outro sem rede de proteção, em busca de uma compreensão epifânica e totalizante do fenômeno futebolístico e do próprio país – vem a ser um traço fundamental do personagem.

Então vamos ver: autor é autor, personagem é personagem, e um não tem nada a ver com o outro, certo? Errado outra vez. O que torna mais difícil a resposta a quem me pergunta sobre a tese de Murilo Filho como se ela fosse minha – e a todos os que, o tempo todo, se dedicam a buscar nas narrativas inventadas pistas sobre a vida e a cabeça do autor – é o fato de que ela é minha mesmo, mas apenas na medida em que foi fabricada como peça a ser encaixada na máquina de sentido da ficção. Uma peça que, em si, não tem verdade ou valor. A verdade e o valor de um romance, se existirem, não estão nas “ideias” que o autor atribui aos personagens nem em possíveis lances de inspiração autobiográfica ou em suas convicções pessoais de cidadão. Estão cifradas no desenho ficcional como um todo. Moram na linguagem.

Tudo isso me ocorreu lendo “A voz em off”, notável artigo de Emilio Fraia em sua coluna no blog da Companhia das Letras. A mais recente das finas reflexões sobre a arte literária que o autor vem publicando mensalmente naquele espaço cita uma entrevista recente de Philip Roth (foto) a um jornal sueco. Frequentemente atacado por quem aponta o machismo rampante de seus personagens (mesmo quando tudo o que tal postura lhes rende é infelicidade), o escritor americano diz o seguinte:

Qualquer um que procure pelo pensamento do autor nas palavras e pensamentos dos seus personagens está procurando no lugar errado. Procurar pelos “pensamentos” de um autor é violar a riqueza da mistura que é a característica mais essencial de um romance. O pensamento mais importante de um romancista é o pensamento que faz dele um romancista. O pensamento do romancista não está nos comentários feitos pelos seus personagens ou mesmo na sua introspecção, mas sim nas situações que ele inventa para os seus personagens, na justaposição desses personagens e nas ramificações realistas do conjunto que ele cria (…) A ferramenta com a qual o romancista pensa é a escrupulosidade do seu estilo. Em todas essas coisas está concentrada a magnitude que seu pensamento pode alcançar. O romance, então, é, em si mesmo, seu mundo mental. Um romancista não é uma pequena parte na grande engrenagem do pensamento humano. Ele é uma pequena parte na grande engrenagem da chamada literatura de ficção. Fim.

Fim, pois é. Difícil ser mais categórico. Isso não significa supor que, uma vez compreendido o argumento, nós, leitores, vamos parar de procurar o sentido de um romance “no lugar errado”. Não vamos. Desconfio que, mais do que a pressa dos entrevistadores ou a busca de simplificar o complexo que está no cerne do jornalismo, o que incomoda Roth seja uma medida de mal-entendido inseparável da leitura de ficção. Onde está o sentido, afinal? Está, não está: muitas vezes o drible termina com uma botinada do zagueiro. O jogo é perigoso mesmo. E vamos em frente.

2 Comentários

  • Moisés Santos da Silva 14/04/2014em02:56

    Brilhante texto ao qual se pode perguntar: os personagens e tudo o que ele pode ou queira fazer com eles são o alter ego do escritor? Ou não? Você seria aquilo que escreve? Como se distanciar do que é do autor e daquilo que não é, ou seja, a ficção? Quando o autor não está inspirado e por isso não pode escrever e se assim o faz não seria uma contradição posto que não sejam dele os males que personagens fazem? Qual seria então o papel da inspiração? Seriam os personagens ou a forma de retrata-los?Claro que o escriba não queria que seu personagem que é do mal fosse real e pudesse fazer o mal,porém é o seu personagem e isto ninguém poderá tira-lo.Ou para o bem(DAQUELES QUE COMO EU SEPARA AS COISAS) ou para o mal.DAQUELES QUE NÃO AS SEPARA .E PONTO FINAL.

  • Alaer Garcia 16/04/2014em11:38

    Entao, a coisa volta a 1600, com Sto Agostinho (genio), no seu Soliloquio e a ´Confissoes’ , o resto sao interpretaçoes das épocas, uma das verossimilhanças é que a massa nao sabe do que seja real e ficçao. ´E como um pacuiente conta sobre a sua doença.
    abs