“Da cor à cor inexistente” é o nome do extraordinário livro sobre teoria das cores lançado em 1977 pelo artista plástico e pesquisador mineiro Israel Pedrosa (foto), hoje com 88 anos. Comprei-o em 1983, quando, levado por uma namorada de inclinações artísticas eclético-renascentistas, fiz um breve curso dado no Rio pelo autor sobre suas experiências fascinantes na fronteira entre a física e a arte. Aprendi então os rudimentos daquilo que Pedrosa chama de “cor inexistente”, a cor complementar que, ausente da superfície material do quadro, aparece na mente do observador como resultado de um entrechoque de cores calculado pelo pintor.
Eu tinha 21 anos, idade em que os inumeráveis futuros de Borges parecem todos presentes em forma de potência, “secretos, atarefados e multiformes”. Em alguns daqueles futuros, embora eu já estivesse embicado resolutamente no sentido de escrever e não no de pintar, parecia evidente que os escritos de Israel Pedrosa me seriam de grande valia. Tenho o livro até hoje, gosto de folheá-lo de dez em dez anos, mas – da vocação à vocação inexistente – a valia nunca se manifestou.
Até agora.
No mesmo conto em que trata de forma definitiva do tema recorrente dos futuros inumeráveis, Borges abre a porta do passado que me restitui o curso de Israel Pedrosa e o arrepio de excitação difusa, também chamado de intuição, que a “cor inexistente” me provocava. Num trecho do maravilhoso O jardim de caminhos que se bifurcam, do livro “Ficções”, o narrador Yu Tsun trava o seguinte diálogo com o sinólogo inglês Stephen Albert sobre um livro que tem o mesmo nome do conto: um estranho, desconexo, bifurcante romance chinês em que, entre outras incongruências, um personagem morre hoje e aparece vivo amanhã. Albert observa que em nenhum momento é mencionada no livro a palavra “tempo” e pergunta:
– Numa charada cujo tema é o xadrez, qual é a única palavra proibida?
Refleti um momento e respondi:
– A palavra ‘xadrez’.
– Exatamente – disse Albert. – ‘O jardim de caminhos que se bifurcam’ é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo; essa causa recôndita proíbe a menção de seu nome. Omitir sempre uma palavra, recorrer a metáforas ineptas e a perífrases evidentes, é talvez o modo mais enfático de indicá-la.
“Tempo”, no caso, é o exato equivalente vocabular da cor inexistente de Pedrosa: aquela palavra que, ausente da superfície material do texto, aparece na mente do leitor como resultado de um entrechoque de palavras calculado pelo escritor. E a chave aqui, claro, é a possibilidade desse cálculo. Ninguém ignora, pelo menos desde Leonardo da Vinci, que as cores exercem impacto umas sobre as outras, como não ignora que um texto literário depende daquilo que não é dito de forma explícita. A chave é o uso deliberado e preciso da cor inexistente e da palavra inexistente como efeito estético.
Nas palavras de Pedrosa, trata-se de “fazer avançar o conhecimento lógico para exercer de forma integral o controle sobre essas transformações das cores (mutações cromáticas), base de toda a harmonia cromática, extraindo daí a variável dose desejada de lirismo existente na pureza da linguagem íntima da cor. O que está além dos simples meios materiais empregados: a outra cor implícita no corpo material da cor, a cor que é a alma e essência da cor, e que, no entanto, é ao mesmo tempo a sua aura – o além-da-cor”.
E o além-da-palavra? Impressão minha ou estamos diante de um ambicioso projeto estético pedroso-borgiano, a ser tenazmente desenvolvido – e precocemente abandonado, e premiado, e ridicularizado, e aclamado, e tratado com indiferença – em alguns dos inumeráveis futuros possíveis?
Nesta crônica, por exemplo, a palavra inexistente é a seguinte:
2 Comentários
Imaterial? Subjetividade?
Aleph.