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De Cervantes a Joyce, segundo Piglia

03/08/2006

Finnegans Wake é um laboratório que submete a leitura a sua prova mais extrema. À medida que nos aproximamos, aquelas linhas nebulosas se transformam em letras e as letras se amontoam e se misturam, as palavras se transmutam, se alteram, o texto é um rio, uma torrente múltipla em contínua expansão. Lemos restos, pedaços soltos, fragmentos, a unidade do sentido é ilusória.

A primeira representação espacial desse tipo de leitura já está em Cervantes, sob a forma dos papéis que ele recolhia na rua. Essa é a situação inicial do romance, seu pressuposto, melhor dizendo. “Sou aficionado a ler até pedaços de papéis pelas ruas”, afirma-se no D. Quixote.

Poderíamos ver nesse trecho a condição material do leitor moderno: ele vive num mundo de signos; está rodeado de palavras impressas (que, no caso de Cervantes, a imprensa começou a difundir pouco antes); no tumulto da cidade, ele se detém para recolher papéis atirados na rua, deseja lê-los.

Só que agora, diz Joyce em Finnegans Wake – ou seja, na outra ponta do arco imaginário que se abre com D. Quixote – esses papéis amassados estão perdidos numa lixeira, bicados por uma galinha que cavouca o chão.

O trecho – e a iluminação que ele contém – são de “O último leitor”, coleção de ensaios do romancista e crítico argentino Ricardo Piglia (Companhia das Letras, 192 páginas, tradução de Heloísa Jahn, R$ 35,50). Todos os textos tratam da leitura e são, apropriadamente, mais que legíveis. Além de Miguel de Cervantes e James Joyce, Piglia chama para dançar Daniel Defoe, Edgar Allan Poe, Franz Kafka, Jorge Luis Borges, Raymond Chandler e até Che Guevara, sem jamais deixar que a erudição lhe pese na prosa e no pensamento. A conferência que ele fará na Flip no dia 12, às 17h, tem o mesmo nome deste livro e promete ser um dos pontos altos do festival.

3 Comentários

  • Saint-Clair Stockler 03/08/2006em18:46

    Piglia já tinha deixado entre nós esse gosto bom pela sua teoria (na prática, ou seja, na prosa, ele é um Mestre) em livros como “O laboratório do escritor” e “Formas breves” – todos extremamente legíveis. Ainda bem que não é todo mundo que acha que para ser levado a sério como crítico/teórico se tem de escrever prosa ilegível.

  • Marcelo Moutinho 03/08/2006em21:00

    Concordo com vc e mais ainda com meu amigo Saint-Clair: o PIglia é um dos raros ensaístas que consegue ser tbm literário em seus textos. “Formas breves” é uma pérola e estou ansioso por ler este novo. De qq forma, já comprei meu ingresso para a conferência dele na Flip.

  • Péricles Peri 18/08/2006em18:50

    Ele já escreveu sobre Cortázar?