Terminei de ler “As Benevolentes” (Alfaguara, tradução de André Telles, 912 páginas, R$ 79,90) no sábado, mas até agora há pouco, como uma jibóia que tivesse engolido um boi, fui incapaz de escrever uma única linha sobre o tijolaço de Jonathan Littell. Impossível negar que se trata de um grande livro, um livro perturbador e sobretudo relevante – talvez o adjetivo mais caro que a prosa de ficção, empurrada a contragosto para uma zona de frivolidade, possa almejar hoje em dia. Como sempre, destrinchar por que é assim será tarefa mais difícil do que simplesmente enunciá-lo. Tão difícil quanto compreender por que, com tanto a seu favor, o romance atola antes de se tornar uma obra-prima.
O narrador Maximilien Aue, oficial SS que participa de momentos cruciais do extermínio de judeus na Segunda Guerra Mundial, não cabe no figurino arendtiano da “banalidade do mal” (aliás, segundo ele mesmo, tampouco Adolf Eichmann, personagem importante do livro – mas essa é outra história). Nem tão eficiente como funcionário, embora cheio de fé nacional-socialista, também não parece que precisasse do empurrãozinho do regime nazista para acabar comprando um camarote no Inferno. Aue não é um homem comum, o pacato pai de família que, a serviço de um Estado enlouquecido, comete burocraticamente atrocidades de tirar o fôlego. É um homem doente, infeliz, assustador. Para um livro que se dedica primordialmente – como o autor declarou numa entrevista citada aí embaixo, e eu confirmo – a investigar “a natureza do crime de Estado”, é um herói inesperado. Longe de ser inocente, tem alma de artista e é capaz de vomitar as tripas depois de presenciar execuções, ou de ir às lágrimas com a mera lembrança de certa adolescente enforcada no Leste, mas também tira proveito do ambiente de morticínio e caos da guerra para praticar um bom número de barbaridades de sua própria lavra.
Pode-se discutir se Max Aue seria o que é sem o clima peculiaríssimo em que se vê mergulhado, aquela Alemanha histérica. Até que ponto ele teria cedido a suas próprias maluquices num momento menos conturbado da História? Seja como for, o fato é que as maluquices estavam lá desde o início, e eram consideráveis. Não sendo, assim, a testemunha perfeita contra o poder corruptor do totalitarismo, Aue ganha contornos tridimensionais ao se distanciar do lugar-comum jornalístico. Humano, e humano culto, tem uma perversa autoridade para refrasear com novo vigor o que, mesmo ameaçando virar um clichê, permanece uma das verdades mais duras que a desgraceira dos anos 1940 nos jogou na cara: qualquer um no lugar dos alemães, nas devidas circunstâncias, teria feito o mesmo. (Mas foram eles que o fizeram.)
De todo modo, não é o estudo do impacto de um regime criminoso sobre o caráter de um homem que interessa ao autor. A psicologia tem escassa aplicação em “As Benevolentes”. Littell a troca de bom grado por súbitos clarões no breu do inconsciente ou do recalque: sonhos, sintomas físicos dolorosos, delírios (como o do casarão na Pomerânia, a mais memorável cena literária que leio desde a transa na biblioteca em “Reparação”). É como se o homem em si já não interessasse tanto, por ter sido condenado antes do livro começar – ou antes de nascer. É à teia do sistema que o autor dedica a maior parte da narrativa e todo o peso de sua pesquisa vasta. Nomes de acidentes geográficos, patentes militares, divisões e órgãos da máquina de guerra alemã se enfileiram na página, minuciosos, expostos com rigor e sobriedade.
O que a princípio parece um exagero cansativo acaba sustentando o livro em pé: a materialização daquela rede de ordens, despachos, relatórios, meandros burocráticos, conflitos de poder entre siglas, promoções e expurgos, todo um Estado que de repente se vê dedicado a esta tarefa singela – exterminar pessoas. A prosa de Littell parece querer lhe dar um corpo, a esse grande culpado. Grande, abrangente, mas evasivo. O autor tem êxito na empreitada, apenas para descobrir no fim das contas que o Estado é frio, vazio. Não quer dizer nada. Sua única lógica é o próprio movimento. Não temos perdão.
“As Benevolentes” é um livro ambicioso que chega perto de cumprir integralmente suas promessas. O que, como se sabe, não é pouco. Curiosamente, o maior problema – responsável por sobrecarregar o aparelho digestivo daquela jibóia ali de cima – surge em sua diminuta fração final, depois da página 880, quando o narrador tem um encontro bizarro com Adolf Hitler. Nesse momento, por alguma razão que não consigo situar num plano geral coerente, Littell joga no lixo o tom que lhe servira tão bem até então – o de um realismo minucioso e extenuante, cada vez mais contaminado por alucinações, é verdade, mas sem jamais abandonar a clave de uma certa verossimilhança. Troca-o de repente por um estilo burlesco, com coincidências absurdas em fila indiana conduzindo a um fim certinho demais. É como se, nos acréscimos do juiz, o autor tivesse se cansado de jogar no esquema “Guerra e Paz” e passasse a se dedicar a firulas de “A última noite de Bóris Grushenko”. Se já não tivesse construído a essa altura uma boa goleada, teria posto tudo a perder.
25 Comentários
Como eu havia comentado, também achei o final totalmente incoerente com o resto do livro. Gostaria de tomar umas cervejas com o Littell para tentar descobrir o que, afinal, ele pretendia com aquilo – vai ver é alguma piada que não ficou clara. Mas é um grande livro, que vai sobreviver às polêmicas e perdurar, não tenho dúvida disso. Max Aue é um dos melhores personagens literários dos últimos anos.
Olá. Insisto (!) para darem uma olhada na cena dos Demônios do Dostoiévski em que o personagem Stavroguin (conferir nome) puxa ou morde (conferir) a orelha de um político figurão durante uma festa.
Também acho que a cena do metrô “se salva” nesse fim.
André
André
Vai ver ele ficou cansado de ter escrito tanto e resolveu terminar tudo rapidinho pra tirar uma férias.
Me lembro que Stephen King destrói um romance ótimo – A dança da morte – nas últimas 50 páginas. Até então, tudo corre às mil maravilhas. Fiquei putíssimo com ele. De repente ele sai matando personagens a torto e a direito! Mata uns 50 de uma vez, numa mini-explosão nuclear. Fiquei chocado! Aliás, mais que chocado: me senti trapaceado. Essa coisa meio “deus ex machina” é uma sacanagem…
(Já prevejo comentários chocados e/ou indignados: “Stephen King?!? Mas estamos falando de LITERATURA! Esse Saint-Clair é um sem-noção mesmo…” Rsrsrs)
Há livros que morrem antes do final. Curiosamente, diria que o citado Guerra e Paz morre antes do final com aquela baboseira teórica.
Mas 912 páginas… Não foste convincente para fazer-me enfrentá-las. Ademais, já faço musculação.
O estranho é que acabo de postar, a menos de 10 minutos, um texto sobre Wagner e o nazismo.
Coisas…
Grande abraço.
Prometo que leio depois do vestibular! Até lá, no máximo leio blogs!
Bjo
Atenção! Contém spoiler
O que foi aquela cena da condecoração? O final, digo acontecimento final mesmo, que fecha o livro, achei completamente coerente com o resto do relato. Por sinal, é o último dos atos vis que ele comete, e é o primeiro que ele faz consciente, com as próprias mãos e compreendendo perfeitamente as conseqüências. Enfim, não havia fantasia, intermediários, amnésia ou inocência. E, como ele não se cansa de dizer, não houve arrependimento.
Cássio, tem razão, o último crime é coerente (mas o primeiro consciente foi o do coroa que toca Bach, não?). Já a seqüência de eventos que conduz os dois até esse ponto (Mandelbrod de malas prontas, encontro com policiais no metrô, a chegada providencial dos russos, o amiguinho aparecendo do nada na hora H) é farsa pura e, a meu ver, destoa demais do livro.
Vou conferir o precedente dostoievskiano recomendado pelo André (que conhece o Aue melhor do que o próprio Littell, dizem). Quem sabe a intertextualidade ajuda a cena a descer.
engatei na página 117, não pretendo tentar desengatar…
Para mim, Mandelbrodt de malas prontas esperando os bolcheviques foi uma última forçada de barra do narrador ao tentar comparar o comunismo bolchevique ao nazifacismo (lembra o diálogo com o prosioneiro russo em Kharkov?), que são duas ideologias muito distantes uma da outra. É parte de um certo revisionismo muito em moda hoje em dia. Já o assassinato do Junker que tocava o contrapunctus, em minha opinião, pode ir junto com os de roldão que ele praticara contra os judeus, e ele mesmo justifica esse assassinato como uma obrigação pela causa – o nacional-socialismo estaria perdido pela postura aristocrática desse e de outros Junkers.
Concordo com você do tom farsesco que as últimas páginas adotaram parece que foi colado no final da história, mas não deve ser algo meio trágico-burlesco o fim de uma guerra em que você é o perdedor? O título do capítulo dá uma dica, você já viu alguém dançando uma jiga? Melhor, os títulos conseguem um bom diálogo entre as formas de conposição e o tom de cada capítulo.
O melhor delírio, em minha opinião, é o de Stalingrado.
E minha jibóia ainda não digeriu a história, só digo que fiquei entre a empatia e o asco com Aue.
Gostaria de entrar na rodada de comentários, mas não li o tijolão… talvez nem leia por alguns anos… vou esperar esse preço cair e o meu tempo subir…
Mas também fiquei curioso com o commet do André… vou checar…
E Saint-Clair, Stephen King?
Senhor Saint-Clair, o senhor é um fanfarrão… hahahahahaha
Abraços, você como sempre muito espirituoso…
Sérgio, meio off-topic mas vale a dica:
http://www.nytimes.com/2007/12/02/books/review/notable-books-2007.html?em&ex=1195880400&en=b06c37b05fe11b64&ei=5087
Só vai sair na versão impressa dia 02.
Oi Sergio,
Ando pensando muito na palavra “ecônomo” para a sua coluna na revista. Ela surgiu numa matéria em O Globo sobre as mordominas governamentais. Ao que consta o repórter de chamou os ecônomos de mordomos, ao que Franklin Martins respondeu com muita voracidade.Enfim, gostei do aparecimento da palavra……e me lembrei de sua coluna. bjs
Mr. WRITER,
Independentemente das minhas credenciais acadêmicas (ou da falta delas, rsrs), sou um leitor. Leio tudo que me caia nas mãos: Proust no original (o que é bem coisa de viado mesmo, rsrsrs), Machado de Assis, Umberto Eco, mas também Sidney Sheldon, Paulo Coelho e… Stephen King. Nunca deixei a Universidade ditar minhas escolhas ou – pior! – os meus gostos. Nem hei de.
Saint-Clair,
esquenta não, to só brncando com você… sei dessas coisas, você sempre foi jogo aberto aqui.
E na verdade eu tava mesmo querendo usar a a palavra fanfarrão há um bom tempo…
Abraços respeitosos.
Off-topic:
“Nunca deixei a Universidade ditar minhas escolhas ou – pior! – os meus gostos. Nem hei de.”
Assino embaixo, Saint-Clair. Também sou assim. Mas confesso que essa resistência tem me causado problemas sérios. A autonomia intelectual dos alunos não interessa a alguns professores.
É isso aí Lord Saint-Clair!
Abaixo a ditadura das listas.
…dia destes entrei em uma livraria e a gerente-balconista da livraria usava o argumento de que ela sempre tinha os títulos da “lista dos mais vendidos de veja”. Falei: “sei.” olhei entao as tais sugestoes (para dar ar de relevância ao argumento de “sofisticação, up to date” dela, pois habito uma cidadezinha de 100 mil habitantes do nortao), mas não fiquei só nelas.
Outra coisa, no tempo em que dispunha de tmepo para ler Veja e Epoca as listas eram quase idênticas. Com variações de uns 2 ou 3 porcentos.
Meu filhinho de dois anos está aprendendo os nomes das cores.
Já conhece o verde e o azul. Mas para me confundir ele aponta um vermelho ou amarelo e diz: “Azul” e depois fica rindo de minha cara de preocupado.
o que ele quer com isso? a) Afirmar que entendeu a lição, mas tem a opção de chamar azul outra cor. b) está apenas de gozação comigo (provavelmente a alternativa certa); c) está exercendo a criatividade e o direito de renomear as cores.
MEU POVO,
FAÇA SUA PRÓPRIA LISTA!
HQ; RPG; CORAO; BIBLIA;VEDAS; I CHING; DIVINA COMÉDIA; O RUBAYYAT; JUK NAFTALINA; PIERRE RANDON; TEX; MÔNICA; MORRIS WEST; E ETC. ETC. ETC.
Lembro de alguns finais inesquecíveis de autores que de repente se cansam e resolvem tirar férias. Acho que foi esse o mal que se abateu sobre Vargas Llosa em seu “Travessuras da Menina Má”.
Ou me engano?
Ah, e só para aproveitar o link com “Reparação”, que, por coincidência, estou lendo no momento.
Já havia gostado de McEwan em “Sábado”, mas este, antes mesmo de terminado, já entra na lista dos meus “Dez do Topo”.
A primeira página das Benevolentes é magistral. Estou ali pela página 120 e até aqui testemunho literatura de primeira grandeza. Difícil passar incólume por Littel. Ainda que o final seja ‘demodè’.
Bem, humildemente creio que os homens em nosso estágio de evolução espiritual( mediano ou pouco abaixo diisso) tendem a se espelhar nos exemplos e sucessos e medos dos nossos parceiros vizinhos , companheiros de trabalho e vida social para “levarmos o nosso próprio barco”…a Alemanha dos anos 33 a 44 foi um grande desastre em matéria de evolução espiritual….objetivos, aspirações no patamar do outro plano todos falharam…obviamente com as ex…de praxe!
Não é facil entender os morticinios da segunda guerra, mesmo porque foram tantos em tão pouco tempo e em lugares tão diversos que a explicação esteja ainda muito longe de nos ser permitida conhecer….foi necessaria…quem sabe talves….mas talvez nãi tenhamos aprendido direito…olhe a sua volta….EEEEEEEE…….zzzzzzzz
Talvez…não…ooops!
Tamara,
Eu diria que não interessa à maioria dos nossos professores. A coisa que eles mais odeiam e temem é um aluno que seja mais brilhante do que eles, ou mais ousado, ou mais livre.
joao gomes,
isso aí. Cada um escolhendo seu próprio caminho, suas próprias leituras. Sempre.
Eu terminei o livro há mais de um mês e até hoje não consegui escrever uma linha sequer sobre tudo aquilo no meu blog. Acho que não absorvi. Tanto é que acabei de ler “A gente se acostuma com o fim do mundo” e já tinha o post na minha cabeça antes mesmo de concluí-lo. Mas, “Benevolentes” é uma coisa … Abraço.
boa tarde
gostaríamos de solicitar seu apoio e divulgação de nossa causa.
http://assinado-tradutores.blogspot.com
agradeço,
denise bottmann