O primeiro livro do americano Mickey Spillane, “Eu, o júri”, de 1947, que já trazia seu lendário detetive durão Mike Hammer, tem um dos finais mais canalhas da história da literatura policial. Quando descobre que a mulher por quem se apaixonou é a assassina do amigo que tinha jurado vingar, Hammer não pensa duas vezes: mete um tirambaço de 45 na barriga dela. Segue-se o diálogo:
– C-como você pôde? – ela ofegou.
Eu só tinha um momento antes de falar com um cadáver, mas deu tempo.
– Foi fácil – disse.
Spillane trabalhou aquele gênero de literatura policial barata que Dashiell Hammett tinha transformado numa fortíssima arte seca e Raymond Chandler em admiráveis exercícios de desencanto e sarcasmo. Barateou tudo de novo, aumentou o volume do sexo e da violência até um ponto ensurdecedor e, como vivemos no planeta Terra, vendeu muito mais em poucos anos do que Hammett e Chandler, juntos, a vida inteira.
O escritor morreu ontem, em casa, aos 88 anos. Leia aqui o obituário do “Los Angeles Times”.
12 Comentários
Todo livro tem algo de bom…
Este final lembra o de “O Falcão Maltês”, mas tem uma diferença fundamental: o fato é narrado de maneira mais escorreita, ao contrário do outro em que há uma longa peroração moralística. A violência também é mais amena: ao contrário de Hammer, que despacha a moça com um tiro na barriga, Sam Spade meramente manda a garota para a cadeia, com uma boa possibilidade de que seja enforcada. Mas Mickey Spillane tem uma outra importância, de que não se está falando muito. Criador do tipo Mike Hammer ele é claramente o precursor do Dirty Harry do Clint Eastwood. E é autor de um dos maiores clássicos do cinema “noir”, com um um filme de 1955 , dirigido por Robert Aldrich, cujo final é de deixar os cabelos em pé. O nome original do filme é “Kiss Me Deadly” – e não me lembro do título em português. Há uma atuação magistral de Ralph Meeker, um grande ator que nunca teve grandes oportunidades, coadjuvado por Albert Dekker e Paul Stewart e um admirável ator negro, Juano Hernández. A morte de Spillane é bom momento para lembrar certa literatura popular de alta importância cuja memória continua viva em autores como Paul Auster.
Está bem, Curiango, você gosta mais dele do que eu. Muito mais, o que é da vida. Só um conselho: suas observações teriam mais credibilidade se você não tentasse comparar “O falcão maltês” com qualquer coisa de Spillane. São ligas diferentes, é como tentar cotejar Bob Dylan com Zé Ramalho, o que acaba conduzindo necessariamente a conclusões falsas.
Pô, Sérgio, mas a comparação do camarada Curiango até que faz certo sentido, são dois finais bem parecidos mesmo. Eu diria até que gostei mais do final do Spillani. Assim como vc compara o começo de um livro do João Ubaldo com o começo de um livro do Garcia Marquez, por que não comparar os trechos finais dessas duas feras brabas do romance policial?
Um grande abraço e parabéns pela coluna, está cada vez mais bacana!
Caro Black Jack, os finais são parecidos por uma razão simples: Spillane é um dos (muitos, incontáveis) imitadores/diluidores de Hammett. Só isso. Escreveu quase vinte anos depois, pegou um formato de sucesso, limou qualquer sutileza e tascou muitas doses de apelação. O diálogo final de Spade com a Sra. O’Shaugnessy não tem nada de palavrório moralista, é um dos pontos altos do amor trágico – desejo batendo contra o muro do dever, e perdendo – do século XX. Como comparar isso com o cinismo brucutu de Spillane, “foi fácil matá-la, baby”? Não dá. Fora isso, tudo bem, o cara fala para o público dele e merece respeito. Abração.
“Não tenho fãs, tenho clientes” – Mickey Spillane
Meu caro Sérgio: como os mineiros e como Machado de Assis – com quem NEM de longe atreveria a comparar-me! – tenho o “tédio à controvérsia” e raramente faço polêmica. Disse apenas que o final de um LEMBRAVA o final do outro, embora um fosse escorreito (3 linhas) e o outro, pelo contrário, levava várias páginas na minha edição.Longe de mim querer avaliá-los por comparação, o que sempre foi e continua sendo um processo odioso. É lógico que Spillane, escrevendo dentro de um mesmo gênero e vinte anos depois de um de seus mestres, não poderia deixar de ter pontos de contacto com ele: em face dos “mestres do passado” todos são “diluidores” (eta palavrinha concretista!), mas o importante no caso é que “diluição” não pode ser considerada meramente como “imitação.” Quando à “peroração moralística” não resta dúvida que ela existe; pode-se interpretá-la como um dos “pontos altos do amor trágico – desejo batendo contra o muro do dever” ou como uma afirmação de conservantismo já que defende um statu quo que não devemos violentar (para Spade, matar um detetive é uma ameaça a toda a classe). Spillane, embora você o considere um “brucutu” e talvez por realmente o ser, tem um personagem que é muito mais subversivo que Sam Spade. Para que se veja isto basta “comparar” as relações de ambos com a polícia. No mais, obrigado pelo conselho, e aceite um abraço “in-polêmico”.
“Subversivo”, um vigilante, Curiango? Se você chama de “subversão” a atividade do Esquadrão da Morte, então sou obrigado a concordar. De resto, concordo de bom grado em encerrar por aqui essa discussão. Um abraço.
Até agora o que eu “conhecia” de Mickey Spillane limitava-se ao título de um discaço de John Zorn, anos 80. A curiosidade aumentou; encontrando alguma coisa, prontamente compara-lá-ei com os cobrões Chandler e Hammet. Inevitável.
SUBVERSIVO – De acordo com o Caldas Aulete (ed. original) significa: “próprio para subverter, para destruir, para perturbar.” Não seria aplicável ao Esquadrão da Morte?
Pode aplicar, Curiango. Normalmente não se faz isso porque “subversivo” está revestido de uma conotação, digamos, revolucionária, normalmente reservada a quem luta pela implantação de um novo sistema político, econômico, estético, moral etc. – e não para quem é um filhote ultraconservador do sistema atual, cujas leis só transgride para melhor defendê-lo. Mas, na letra fria, não está exatamente errado.
O herói matar a mulher pela qual se apaixona, ao saber de uma culpa desta, foi usado no filme nacional “Achados e Perdidos”, baseado num livro homônimo do Garcia-Rosa (não tenho certeza da grafia). Chacrinha dizia “nada se cria, tudo se copia”, que já é paródia sobre Lavoisier.