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DFW, o prolixo sintético, está entre nós

29/10/2012

Aqui vai mais uma historinha didática. Tem dois caras sentados num bar nas profundezas remotas do Alasca. Um dos caras é religioso, o outro é ateu, e eles estão discutindo a existência de Deus com aquela intensidade característica que surge lá pela quarta cerveja. Aí o ateu diz: “Olha, não é que me faltem motivos concretos para não acreditar em Deus. Não é como se eu nunca tivesse experimentado essas coisa toda de Deus e orações. Agora mesmo no mês passado eu estava longe do acampamento quando fui pego de surpresa por aquela nevasca terrível, não conseguia ver nada, fiquei totalmente perdido, estava 45 graus abaixo de zero, e aí decidi fazer exatamente isso: caí de joelhos na neve e gritei ‘Oh Deus, se é que existe Deus, estou perdido nessa nevasca e vou morrer se você não me ajudar!”. Aí o sujeito religioso encara o ateu, todo intrigado: “Bem, depois disso você deve ter começado a acreditar”, ele diz, “afinal de contas você está aqui, vivo”. O ateu revira os olhos, como se o religioso fosse um tremendo paspalho: “Não, cara, só aconteceu que uns esquimós apareceram do nada e me mostraram para que lado ficava o acampamento”.

É fácil submeter essa história a uma análise meio que padrão das ciências humanas: a mesmíssima experiência pode significar duas coisas completamente diferentes para duas pessoas diferentes, dado que essas pessoas têm dois padrões de crença diferentes e duas maneiras diferentes de construir sentido a partir da experiência. Como valorizamos a tolerância e a diversidade de crenças, preferimos que nossa análise das ciências humanas passe longe de afirmar que a interpretação de apenas um dos caras é verdadeira enquanto a do outro é falsa ou inferior. Nada de errado nisso, tirando o fato de que nunca chegamos a discutir de onde nascem esses padrões e crenças individuais, quer dizer, onde eles nascem dentro dos dois caras. É como se a orientação mais básica de uma pessoa diante do mundo e do significado de suas experiências pudesse estar predefinida de alguma forma como a altura ou o número do sapato, ou ser absorvida da cultura, como a linguagem. (…)

(…) o fato é que o problema dos dogmáticos religiosos é exatamente o mesmo do ateu dessa história – a arrogância, a certeza cega, uma tacanhice que representa uma prisão tão completa que o prisioneiro nem se dá conta de que está trancafiado. Estou querendo dizer que o verdadeiro significado do mantra do “ensinar a pensar” nas ciências humanas tem a ver com isso: ser um pouco menos arrogante, ter um pouco mais de “consciência crítica” a respeito de mim mesmo e minhas certezas… pois no fim das contas uma porcentagem enorme das coisas a respeito das quais estou inclinado a automaticamente ter certeza acaba se revelando ilusória ou completamente equivocada. Aprendi isso do jeito mais difícil, e suponho que com vocês, formandos, não será diferente.

O trecho acima pertence ao famoso “Isto é água”, o discurso de paraninfo proferido por David Foster Wallace em 2005, um dos seis textos de não-ficção do escritor americano reunidos no recém-lançado “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo” (Companhia das Letras, 312 páginas, R$ 44,50). Com tradução dos escritores Daniel Galera e Daniel Pellizzari, trata-se do segundo livro de DFW lançado no Brasil – depois dos contos de “Breves entrevistas com homens hediondos”, da mesma editora – e de uma porta de entrada certamente mais acolhedora para leitores que ainda não tenham compreendido por que o autor, que estaria com 50 anos se não tivesse cometido suicídio em 2008, goza de tanta admiração. Como diz Galera no impecável prefácio, “alguns de seus melhores e mais importantes textos de não ficção estão entre os mais acessíveis e bem-humorados”.

Pode-se discutir a seleção, claro. Eu sinto falta de “E unibus pluram”, o célebre texto sobre a ironia televisiva (do qual traduzi um bom naco aqui no blog). Outros terão suas próprias preferências não contempladas neste volume. Mas aqui estão “Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer”, “Pense na lagosta” e “Federer como experiência religiosa”. Aqui está um olhar sobre a cultura contemporânea, especialmente a americana, que lembra o que dedicaria a rituais txucarramães um antropólogo bem humorado de métodos pouco científicos, mas nunca desprovido de compaixão. Nenhuma omissão muda o fato de que nessa coletânea de ensaios-reportagens – acrescidos de um discurso de paraninfo – aparece de corpo inteiro o DFW não ficcionista, que no fundo não era muito diferente do ficcionista.

Não que ele estivesse especialmente interessado em apagar a fronteira entre gêneros. O que o repórter e o ensaísta têm em comum com o romancista e o contista é o impulso ético de ressensibilização do leitor anestesiado por males que parecem estar no ar da sociedade pós-industrial: cinismo, individualismo, narcisismo, hedonismo, irresponsabilidade social. Como deixa claro o singelo trecho acima, que pode ser lido como profissão de fé, DFW está no ramo de questionar as certezas automáticas advindas do condicionamento cultural. É preciso que a linguagem, campo privilegiado do automatismo, seja posta em questão. Em vez de explodi-la, porém, como faria a arte conceitual, o artista a interroga incessantemente, tentando forjar com a mesma linguagem que aprisiona a chave da cela, pois do que mais se poderia fundi-la? As palavras são veneno e antídoto. Daí a abundância de digressões reflexivas, ressalvas e notas de rodapé, a famosa prolixidade que, em seus melhores momentos, não é ausência de síntese, mas um desdobrar de sínteses em profusão.

8 Comentários

  • maria christina monteiro de castro 29/10/2012em14:25

    PÔ Sergio, me lembro de vc no globo e quando vi a Helô e vc em um “relacionamento sério” no face, pensei há quanto tempo….de repente descubro seu blog. Vou te acompanhar já estou catando estas pérolas do DFW, que cita como prolixo sintético(delicioso!).Nunca tinha ouvido falar. Bom demais. um abraço
    Valeu, Maria Christina. Seja bem-vinda. E leia o cara, vale a pena. Um abraço.

  • Rafael 29/10/2012em14:37

    Sérgio,
    Como não sou muito familiarizado com a obra do David Wallace, fico intricado com o título do ensaio — Ex Unibus Pluram. Sei, isso aliás é evidente, que é um trocadilho com a famosa frase “ex pluribus unum” (“da diversidade [nasce] a unidade”, numa tradução semi-literal), lema adotado pelos founding fathers dos EUA.
    O que me incomoda é ter o DFW laborado uma adaptação simplesmente errada do latim. O certo seria Ex Uno Plures ou, melhor ainda, Ex Uno Plura. Sei que o trocadilho deixaria de ser evidente, ao menos para o leitor comum, que rumina o anêmico capim que lhe dá o sistema educacional, mas, para quem costumava lançar um olhar desiludido em direção à cultura do mass media, uma piscadela ao rigor erudito soaria mais coerente — além de insolente.
    Assim, ao menos, penso eu.
    Vale
    Caro Rafael, acredito que a ideia tenha sido manter o trocadilho acessível, privilegiando o lúdico sobre o erudito. Uma operação que está longe de ser incomum em DFW, apesar de sua fama de difícil. “E pluribus unum” é uma expressão familiar para o americano médio, por ter sido, como você mesmo observa, o lema dos EUA até os anos 1950, quando o Congresso adotou “In God we trust”. Um abraço.

  • Rodrigo Lattuada 29/10/2012em15:14

    Sérgio, pelo que eu entendi, a seleção dos textos tinha mais foco “convidativo”, da mesma forma que foi feito na Alemanha: alguns textos mais leves pra servirem de introdução à literatura do cara e pra fazer mais gente conhecer o DFW, já preparando o terreno pro lançamento do Infinite Jest, ano que vem. O Breves entrevistas, até onde eu sei, vendeu absurdamente mal. Acho que a primeira tiragem (provavelmente 3000) só terminou em 2011 (6 anos depois do lançamento). Mas isso é no achômetro, mesmo. Até pensei que o F/X Porn, que é dos mais engraçados e curtinhos do Foster Wallace, ia aparecer nessa coletânea. O E unibus pluram tem um tom mais sério, meio acadêmico em uns pontos, acabaria destoando dos outros. Acho que eventualmente eles vão lançar traduções integrais do A Supposedly Fun…, do Consider the Lobster e do Both Flesh and Not.
    A ideia foi essa mesmo, Rodrigo, isso é explicitado no prefácio do Galera. Mesmo assim, eu teria incluído o ensaio da ironia televisiva, mesmo sendo meio cabeçudo, pela centralidade dele no pensamento do cara. Qualquer antologia é assim mesmo, claro. Que o livro venda muito bem e venham outros.

  • Rosângela Maria 29/10/2012em16:52

    Tá vendo? Aí é que está a diferença! Aparecem dois esquimós do NADA.Do NADA!!!! Deus só faz treco do Nada, sabia?

  • Rosângela Maria 29/10/2012em22:23

    ichi! Não são “dois” esquimós e sim “uns” esquimós. De onde tirei isso? Bem, o importante é o “nada”. Bem mais importante que o “dois” ou o “uns”. De qualquer forma, desculpa-me.

  • Athayde 30/10/2012em16:45

    Ssérgio, comprei o livro Breve Entrevistas com Homens Hediondos – gostei de quase tudo, menos do conto Datum Centurio. Depois de o ler, e sem entender absolutamente nada, me senti o cara mais burro do planeta.

    • sergiorodrigues 30/10/2012em17:42

      Athayde, você e a torcida do Flamengo (e do New York Giants). Um abraço.