A ficção é tão boa ou melhor do que estudos acadêmicos em “representar e comunicar as realidades do desenvolvimento internacional”, concluiu um estudo conjunto da Universidade de Manchester e da London School of Economics, segundo notícia publicada ontem pelo jornal “Daily Telegraph” – em inglês, acesso livre.
O argumento é que a ficção (o que, para efeitos do estudo, inclui poesia e dramaturgia) “não é comprometida pelas questões de complexidade, política ou legibilidade que às vezes afetam a literatura acadêmica”.
O romance “O caçador de pipas”, de Khaled Hosseini, um best-seller mundial, é citado como exemplo: teria feito “mais para educar os leitores ocidentais sobre as realidades da vida no Afeganistão sob o jugo dos talibãs e imediatamente depois do que qualquer campanha governamental de mídia, relatório de organização de direitos humanos ou pesquisa de ciência social”.
Muita gente vai dizer que os caras endoidaram ou querem aparecer, com essa conclusão tão contrária à nossa era de crença suprema na ciência e nos “fatos”. Outros, lembrando que contar histórias sempre foi – e não tem por que deixar de ser – parte indissociável daquilo que fez da humanidade, humanidade, dirão que os pesquisadores ingleses estão redescobrindo a pólvora.
Fico com a segunda opção, fazendo apenas a ressalva de que não há nada de condenável em redescobrir a pólvora a esta altura do furdunço. Acreditar, como talvez a maioria das pessoas acredite hoje, que o discurso das ciências humanas ou mesmo do jornalismo leva algum tipo de vantagem invencível sobre o da ficção em capacidade de representação e construção simbólica do real é de uma ingenuidade desanimadora.
E o que pensa você, leitor, semelhante meu?
27 Comentários
Se algum tipo de mefistófeles viesse a mim e dissesse: “a partir de hoje, você só vai poder ler ficção ou não-ficção. faça a escolha e terá todos os livros que quiser.” Sem pensar muito, eu escolheria ler ficção o resto da minha vida. Mas ficaria um pouco triste por não ter mais acesso a magníficos relatos de viagens, biografias, livros-reportagem, livros de história, filosofia, antropologia, cinema, teoria literária etc.
Reinventando a pólvora!
ora, a ficção, principalmente em seu formato romance bem escrito, desvenda a natureza humana de uma forma que transcende as repetições nauseantes do noticiários e das temporais análises acadêmicas: este é um de meus nortes.
Faz sentido, sem dúvida. Além disso, há de se considerar que certas teses acadêmicas possuem mais fantasia do que muita ficção. Com o prejuízo de virem, em geral, numa linguagem mais enrolada que bicho da seda.
E, pensando melhor, será mesmo necessária essa divisão tão maniqueísta entre ficção e não-ficção?
Mal-humorado, acrescento que devemos levar em conta os muitos professores / pesquisadores semi-alfabetizados por aqui, escrevendo artigos científicos. Não me esqueço de uma entrevista do Houaiss para o Roda-viva, em que cita ter analisado dez teses de doutorado então, e ter considerado todas com português “insuficiente”.
Perdoem-me pelo desvio do assunto e pelo melindre.
Um abraço.
Sérgio, em primeiro lugar parabéns pelo post. Mas fico pensando se essa crença majoritória apontada por você não se deve justamente a uma separação (também meio senso-comum, é verdade) entre, por um lado, o mero exercício da “representação”, e, por outro, a própria atvidade da “construção”. O curioso é que, pensando em termos acadêmicos, já há uma longa tradição teórica que questiona esse suposto poder denotacionista do discurso científico. Os argumentos são vários, mas, no final das contas, acabam por compartilhar a indagação feita pelo Tomás em torno desse maniqueísmo epistemológico. De qualquer forma, bom saber que, gradativamente, temos deixado de confundir o fato de possuirmos idéias com a idéia de possuirmos os fatos.
Abraços!
Sendo reinvenção da pólvora ou não, só posso dizer que minhas estantes preferem ficção à não-ficção.
Meu semelhante,
Tem sentido. Fico apenas tentado a fazer um paralelo com a literatura brasileira “de gueto”. E daí as coisas se complicam. Ferrez serve mais para entender a realidade nacional do que Bernando Carvalho (demorei a achar algo como uma antítese do mano)?
Escrevendo isso me dei conta de que a grande bobagem do estudo não é pôr a literatura acima da produção acadêmica. A grande besteira do estudo é achar que existe algo como “realidade nacional” ou “caráter nacional”. Hamlet, o melhor exemplo sempre, não é um país, e sim um humano. Como nós, leitores, Semelhantes de Shakespeare.
Abs.
Eu concordo com a tese. Este é um dos temas que mais me interessam, mas acho que há uma certa confusão nos argumentos dos nossos amigos britânicos. O fato da ficção ser superior para “representar e comunicar as realidades do desenvolvimento internacional”, nada tem a ver com ” educar os leitores ocidentais sobre as realidades da vida no Afeganistão sob o jugo dos talibãs…”
Na minha opinião, a superioridade da ficção não tem a ver com “educar” ou ” representar.” O que ocorre é que partir da linguagem, da construção do discurso, a gente pode compreender melhor uma determinada época. É o que meu querido Bahktin diz: ” a palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais.”
Em tempo:
Esta semana, João Ubaldo pintou por aqui nos elogiando — leitores do Todoprosa — pelo fato do blog ter escolhido, por meio de votação, “Viva o Povo Brasileiro” como o melhor livro dos últimos 25 anos. O elogio aos doidos da trincheira de cá era também auto-elogio, já que ele demonstrou que concorda com a eleição. Isso posto, vos digo o que lembrei agora há pouco: na ocasião da votação, Sérgio fez segredo sobre um certo autor que havia votado em si mesmo. Será o baiano reincidente na arte do auto-elogio ?
Eu sou uma dessas pessoas que lia, lia, mas achava o afeganistão um tanto dificil de entender.
A partir de “O caçador de pipas” e “A cidade do sol”, (além de “O livreiro de cabul”) algumas coisas ficaram mais claras, como as guerras tribais, quem são os hazaras, quais são as provincias e do que vivem e me ajudou até mesmo a entender os artigos científicos mais facilmente, por comparação com a narrativa.
Acho que a não-ficção tem muito mais preconceito com a ficção que o contrário. Por que será existe essa teimosia na sisudez e mecanicidade do jornalismo, por exemplo? Nos gêneros mais livres, como crônicas e artigos, onde cabe opinião, ironia e analogias, e até formas literárias de contar (principlamente em se tratando de crônicas), temos, com certeza, muito mais, e infinitamente mais prazer na leitura. E acho que não estou realmente falando de poucas pessoas.
Já a literatura sábia envolve pesquisa. Se não traz uma história real, pelo menos se embasa na realidade. Afinal, muitos poucos livros tratam de planetas distantes, ou coisas que se desconhece, ou simplesmente se inventa. Então, a ficção séria é nada preconceituosa, enquanto a não-ficção se fixa, muitas vezes, num padrão chato de se falar dos fatos.
A tese deve ser aceita “cum grano salis”. A ficção não é um manancial homogênio em matéria de estilo e qualidade. Um romance realista de um bom romancista – digamos, o Eça no século XIX – pode de fato dizer mais sobre as sutilezas de uma sociedade do que qualquer reportagem de ocasião, que será sempre mais ou menos ditada por certas convenções, certos limites de tempo na confecção, e certos preceitos naturais da famigerada e sempre almejada “objetividade” jornalística, de resto nunca alcançada.
Mas daí a dizer que, digamos, a poesia modernista de um Bandeira, um poema surrealista, uma peça do teatro do absurdo ou mesmo um romance de má qualidade são melhores espelhos da sociedade do que uma boa reportagem ou uma detida análise científica, aí já é exagerar no louvor da ficção.
Sérgio: Minha impressão é apenas de que no momento em que assim que este pesquisador apresentou a seu assistente sua idéia, este respondeu com a fleuma característica dos britânicos “no shit, Sherlock”.
Tibor: (Se você aparecer por aqui.) Recebi o convite do lançamento do seu livro por meio do pessoal da Tarja. Parabéns e te vejo lá.
É quase metafísica essa pergunta, Sérgio.
Mas, o que é efetivamente ficção? E realidade? Sabe-se, de modo prático, por exemplo, que Julio Verne era pago por Hetzel para incluir conceitos de geografia em seus romances (e JV lia, e muito, a Scientific American)…
A descrição de um fato, depende do observador. Mas, até que ponto seus “sentidos” não estariam contaminado?
Penso, entretanto, que a ficção moderna não aceita o ponto de vista de um narrador apenas. Creio que haja uma tendência a apresentar as histórias sob diversos pontos de vista (para ver se algum acerta), o que não deixa de ser consequência da era fragmentada que vivemos.
Borges diria que não existe realidade, tudo é ficção (mesmo o jornalismo e até, talvez, essa minha sentença).
Arthur Machen, de ” Os Arqueiros” , repetia que o sobrenatural é a realidade (talvez, tivesse razão).
O psicólogo Havelock Ellis complementaria: “Sonhos são reais enquanto duram – podemos dizer mais alguma coisa da vida?” Mas, e se existe a vida eterna? O que é vida? O que é sonho?
Pensando em nossos limitados e deploráveis sentidos, me questiono, e se o que consideramos realidade, não o for?
Sobre a ficção, mas não tenho a menor dúvida, de que ela seja muitas vezes mais didática. Basta observar o modelo dos games.
A ficção é, guardando as devidas proporções, claro, um modelo de simulações. E isso nos conforta, nos relaxa, pois sabemos que nos guiamos por um território mais ou menos seguro.
Mais ou menos seguro, não significa que seja desprovido de verdades muitas vezes mais acachapantes do que encontramos nos ensaios, pois é na ficção que os questionamentos atingem uma certa transcendência.
A cada momento, vai ficando mais fácil acreditar na ficção que na realidade.
Não negando os méritos que tenham as ciências, mas “daquilo de que não se pode falar, deve-se calar” soa verdadeiro demais para ser mentira, e não é desconhecido o talento da ficção para o silêncio.
Reiventando a pólvora. Cada coisa no seu lugar, boa literatura em todos. 🙂
Mas eu acho que a briga não é sobre ficção x não-ficção, já que a comparação foi feita com o discurso acadêmico. Em relação a ele, não tenho dúvida de que a ficção pode se sair tão boa quanto em informações e muito mais agradável na leitura. Meu lado pessimista, porém, vê outro aspecto: o perigo de uma grande parcela de leitores “comuns” (não sei que outro termo usar) começar a acreditar em ficção como se fosse verdade. Não li a safra afegã, não tenho idéia se o país que é descrito nos livros corresponde à realidade ou ao comportamento atual. Mas o que já vi de gente que acredita que a Maria Madalena era a mulher de Jesus Cristo, que o rei Arthur não se rendeu ao poder da deusa e por isso foi pras cucuias, que o Nietzsche realmente chorou tanto quanto o Yalom conta… Sei não.
Obrigado a todos que apareceram para o debate. Fazia tempo que não se via um tão bacana por aqui.
Seu Semelhante: nada de Ferréz, por favor. Reconheço que, até pelo exemplo dado, o tal estudo parece se fixar numa visão meio mecanicista de “realidade” e mesmo de “realidade nacional”. Mas acho que isso é acessório e não invalida a conclusão. A meu ver, um romance não realista pode ser tão eficiente ao retratar uma época, um clima, um modo de pensar quanto um realista cheio de pesquisa. Nesse ponto discordo do Chato.
Também não acho que o “didatismo” citado por alguém seja o ponto central, embora o tal estudo inglês também pareça sugerir isso em alguns momentos. O fundamental é a eficácia – ou não – da ficção como instrumento de apreensão (ou de construção, o que talvez dê no mesmo) de conhecimento. De compreensão do mundo. Nisso eu acredito.
Pablo, concordo e acho que você toca num ponto importante: é óbvio que o discurso sobre o real – por mais rigorosamente construído que seja, como o científico – jamais será o real. A própria ciência sabe disso. Mas o cientificismo de nosso tempo, não.
E vamos ao off-topic:
Eric e Luciana: isso é uma irrelevância diante da discussão, mas já que vocês insistem em reinventar a pólvora, fiquem à vontade. Eu continuo preferindo redescobri-la. A expressão popular a que me habituei é esta, embora ambas as formas se encontrem com a mesma abundância por aí. E sim, claro que a (fórmula da) pólvora pode ser descoberta. Ou redescoberta.
Pedro David: boa tentativa, mas o Ubaldo nem estava entre os votantes da enquete. Ele só soube do resultado pela entrevista do Rascunho.
Abraços a todos.
A afirmação do estudo corresponde mais ou menos a dizer que água é muito melhor para beber do que borracha. É claro que a ficção, ou pelo menos aquela que quer fazê-lo, representa a realidade melhor do que estudos acadêmicos. Estudos acadêmicos jamais representam a realidade, eles, no mais das vezes, o analisam e sintetizam. Por outro lado, alguém que saiba representar e analisar pode se dedicar a ambas as atividades e acho que o exemplo mais claro é Sartre, goste-se ou não do que ele escrevia / pensava. Além disso, só faltava o estudo acadêmico ensinar o público sobre a realidade melhor do que a ficção (realista)! Desde quando um estudo acadêmico existe para ensinar alguma coisa à população?
tá certo que um relato ficcionario não se compara nem um pouco com um jornalistico,mas deve-se considerar que o primeiro é tão fundamental quanto o segundo,pois desde sempre as gerações passadas transmitem as futuras parte de suas vidas e de suas culturas por meio de relatos ficcionarios.
Ha bons textos e maus textos. Prefiros os bons, sejam ficção ou não-ficção…
Não são duas fases estanques, como óleo e água. Há muito de observação empírica na boa ficção, e há muito criação literária nos bons ensaios acadêmicos. Na grande faixa de transição, ha´coisas ruins e boas, como nos extremos. Um dos meus “romances” favoritos é Casa Grande & Senzala, mas claro que não é um romance. Ou é?
Acabo de ler o Veneno Remédio, do Wisnik, com citações e recriações maravilhosas. Ao ler três relatos sobre a final da copa de 50 no Maracanã (Perdigão, Mário Filho e um inglês, todos testemunhas reais do evento), vi três narrativas completamente diferentes!
Sérgio, não entendi seu comentário desagradável nem o que o meu tinha de off topic. Quis dizer que o assunto não tem nada de novo. Só. Ao meu ver a ficção sempre representará o quadro histórico-social-etc em que foi escrita. Como qualquer outra arte. O cinema é cheio de exemplos. A literatura idem. São diferentes maneiras de mastigar a realidade. Abs.
Eric, meu comentário “desagradável” teve a intenção de apresentar uma discordância em termos civilizados. Mas se interpretei mal o seu, peço desculpas. Como você só repetiu o que eu havia dito, trocando o verbo, li uma reprimenda vocabular fútil (e por isso off topic) onde não havia. Um abraço.
Logo depois que mandei o comentário entendi o que era. Sorry também!
Tendo sido o citado livro, eu acho, o primeiro de autor afegão (mesmo que “americanizado”) que eu li, confesso que ele fez muito para que eu sentisse, em relação ao Afeganistão, aquilo que sempre soube ser óbvio, mas que nem sempre é visível: todos os povos são basicamente iguais. Se a ficção não for a melhor forma de conhecer uma cultura, certamente não é a pior. Pra mim, é muito boa. Mesmo porque sempre existe um tanto de ficção (no mínimo, de subjetividade) nos relatos científicos.