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E agora, José?

28/09/2013

O poeta morreu no dia 17 de agosto de 1987. Do ponto de vista de um novo século, é tentador afirmar que a própria poesia – como a literatura em geral – não demoraria a seguir seus passos. Essa afirmativa, por conter um exagero, requer explicação. Uma reportagem de capa como a que VEJA fez quando da morte de Carlos Drummond de Andrade (foto) dificilmente será reeditada com um de seus colegas de ofício quando lhe chegar a “indesejada das gentes” (para usar a expressão de outro monumento poético brasileiro, Manuel Bandeira). Ou mesmo, para citar um gênero mais próximo do gosto popular, com um de nossos romancistas.

Poemas e romances ainda são escritos, claro, em quantidade inédita e, em certos casos, com boa qualidade. Contudo, já não ocupam na cultura a posição central e ressoante que permitiu a Drummond entranhar imagens e bordões na linguagem comum de todo um povo: “Tinha uma pedra no meio do caminho”, “E agora, José?”, “Seria uma rima, não seria uma solução”. Ou elaborar, numa voz ambiciosa e menos acessível ao grande público, mas não menos impressionante, um poema filosófico como “A máquina do mundo”, do livro Claro enigma, de 1951. Nesse candidato ao pódio poético da língua portuguesa em qualquer época, o poeta caminha por uma estrada de Minas quando vê se abrir à sua frente “essa total explicação da vida,/ esse nexo primeiro e singular/ que nem concebes mais, pois tão esquivo/ se revelou ante a pesquisa ardente/ em que te consumiste…”. Todos esses exemplos são citados no necrológio de VEJA.

Procurar no século XXI o “novo Drummond” seria como esperar pelo “novo Pelé”: um despautério. Se a constatação é indiscutível, críticas simplistas que a atribuem à suposta decadência da cultura (e do futebol) no país deixam de levar em conta o fato de que, em cada época, a máquina do mundo fabrica não apenas seus produtos, mas também a balança com que se deve avaliá-los. Na cultura globalizada, informatizada, pós-industrial, o peso da literatura diminuiu tanto que apregoar sua morte tem sido um dos estratagemas preferidos de críticos acadêmicos e midiáticos em busca de uma aura radical e provocadora que, pela repetição, acaba provocando apenas bocejos. O fenômeno não se restringe ao Brasil. Se não temos mais um escritor do tamanho de Carlos Drummond de Andrade ou Guimarães Rosa, também não surgiu na literatura francesa um novo Albert Camus, nem na Argentina um Jorge Luis Borges internético ou nos EUA um William Faulkner redivivo.

Em 2010, a revista semanal americana Time estampou na capa uma foto do escritor Jonathan Franzen, que então lançava o romance Liberdade, com o seguinte título: “Grande romancista americano”. Pela primeira vez em dez anos, para pasmo geral, um profissional das letras ia parar na cobiçada vitrine da revista. Franzen tinha então 50 anos, a mesma idade de John Updike em 1982, ao chegar à capa da mesmíssima Time. Não era por falta de experiência ou talento que sua presença ali provocava um estranhamento que a de Updike não provocara. É que, naquelas três décadas, a máquina do mundo tinha alterado as especificações da balança.

Uma das melhores reflexões sobre esse rebaixamento cultural da literatura é do crítico e escritor italiano Claudio Magris. “Desde seu nascimento – ou seja, desde o romantismo ou já no final do século XVIII –, a literatura contemporânea é marcada pelo sentimento de uma ferida profunda que a história parece ter infligido ao indivíduo, impedindo-o de realizar plenamente a própria personalidade em acordo com a evolução social e fazendo-o sentir a impossibilidade e a ausência da vida verdadeira, o exílio dos deuses e a fragmentação de sua própria existência”, escreve Magris, parecendo falar do próprio Drummond. E conclui: “Agora tudo isso parece findo; um karaokê em diversos níveis suplantou toda utopia e toda revolução e, como previra Nietzsche, o próprio homem está mudando radicalmente”. O pior é que o maior poeta brasileiro já não pode traduzir para nós todo esse burburinho.

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Com o subtítulo “Por que não adianta ficar procurando outros Drummonds”, o artigo acima foi publicado na edição especial VEJA 45 Anos, que revisita as capas mais marcantes da revista desde seu lançamento, em 1968, de um ponto de vista atual. A morte de Drummond é desse modo um mote para a discussão da suposta morte da literatura, que alguns críticos vêm apregoando com volúpia indisfarçável. Todas as reportagens dessa histórica edição podem ser baixadas gratuitamente no tablet, aqui.

2 Comentários

  • Claudio Faria 30/09/2013em15:00

    Excelente, Sérgio! À medida em que ia lendo achava certo trecho excelente; aí vinha outro e eu percebia que o anterior não havia sido uma exceção. Vou destacar dois: “…em cada época, a máquina do mundo fabrica não apenas seus produtos, mas também a balança com que se deve avaliá-los”, e “Na cultura globalizada, informatizada, pós-industrial, o peso da literatura diminuiu tanto que apregoar sua morte tem sido um dos estratagemas preferidos de críticos acadêmicos e midiáticos em busca de uma aura radical e provocadora que, pela repetição, acaba provocando apenas bocejos”. Penso que vivemos tempos cínicos, Sérgio. A desconfiança para com os mestres, os expoentes – se é que estes ainda existem – costuma ser acompanhada de um certo ressentimento. Há aqueles que esperam apenas uma classificação elogiosa para apregoarem sua aversão, desconfiança ou até mesmo rancor. Mas, à despeito disso, a meu ver não temos atualmente aqui no Brasil um “monstro” literário em vigor, alguém que será lembrado como mestre daqui a alguns anos. Fonseca, Trevisan, mereceriam esse título? Sinceramente, não acho.

  • jumentinha 30/09/2013em15:34

    Drumond arguia um tempo onde a natureza (humana) era realmente humana. Hoje parece que o humano foi diluido da nossa natureza, e, por isso, poesias e romances não conseguem atingir seu, diria, sui generis objetivo. Também por isso, drumonds por aí nem sejam percebidos. Basta que alguns “entendidos” da Time afirmem para que seja determinado? E quanto aos críticos? Quem os criticariam? Os drumonds por aí? Coitados… Tem muitos deles em lindas jogadas, mas sempre impedidos de fazer gol.