A polêmica sobre o fim anunciado do livro ganha a adesão de duas vozes de peso. Umberto Eco comparece com a transcrição de sua palestra Da internet a Gutenberg, de 2003, traduzida para o português pelo professor catarinense João Bosco da Mota Alves (o link é uma contribuição do leitor Francisco Gonzalez). Comentando as infinitas possibilidades de “leitura ativa” que o meio eletrônico propicia, aquelas que seus propagandistas saúdam como o fim do “livro fechado” – hipertexto, interatividade, edição, colagem de fragmentos –, Eco defende o livro tradicional com sobriedade e elegância, apresentando um singelo argumento filosófico:
Você é obrigado (como leitor de um livro) a aceitar as leis do destino, e constatar que não pode mudar o destino. Um romance hipertextual e interativo nos permite praticar liberdade e criatividade, e espero que tal tipo de atividade inventiva seja praticada nas escolas do futuro. Mas “Guerra e Paz” escrita não nos confronta com possibilidades ilimitadas de Liberdade, mas com as leis severas da Necessidade. Para sermos pessoas livres, precisamos também aprender esta lição sobre Vida e Morte, e apenas os livros ainda nos presenteiam com esta sensatez.
A outra contribuição tem peso intelectual equivalente: vem do historiador francês Roger Chartier, que tem se dedicado ao tema da história do livro e da leitura. Em entrevista a Cristiane Costa na X Bienal do Livro carioca, Chartier apontava já em 2001 uma limitação da leitura interativa e fragmentária feita no computador – limitação de caráter bem mais prosaico que a citada por Eco, embora o efeito prático não seja muito diferente:
(…) vem correspondendo bem (o computador) aos textos de natureza enciclopédica, que supõem uma leitura fragmentada, já que não foram feitos para se ler da primeira página até a última. Há uma adequação perfeita do suporte a este tipo de livro e, por isso, algumas enciclopédias, como a Britânica, não conhecem mais a edição impressa. Mas, para romances e ensaios, em que se supõe uma leitura mais contínua, é preciso aquele tipo de livro que possa ser levado para todo lugar, para a mesa, para a cama, para o jardim. Se cai um livro, não há problema, se cai um computador…
12 Comentários
Mais prosaico que isso é faltar luz.
esse debate é a maior forçação de barra.
além de o livro ser a melhor interface já inventada para a leitura e anotação. se for superado enquanto interface, persistirá ainda a questão do fetiche: leitores em geral gostam das sensações causadas pelo livro, da textura, do cheiro do papel, das cores na estante.
Supndo-se que um dia invente-se um suporte eletrônico que permita ler por períodos prolongados sem que – como diz Humberto Eco – nossos olhos fiquem se parecendo a duas bolas de tênis, é possível que o livro, como objeto físico venha um dia a deixar de existir. Isto ecologicamente até poderia ser bom, afinal para se produzir papel se cortam muitas árvores e se promove tremendos níveis de poluição e mau-cheiro. Só que eu não acredito. Na década de 70, Mc Luhan já dizia isto – e o dizia na forma de um livro. Agora, Humberto Eco diz o contrário, mas seu texto me chega de forma eletrônica. Eu próprio já tenho lido alguns livros na forma de e-books, sem imprimí-los. Verdade que sofri o efeito “bola-de-tênis”, mas ainda assim, li. Não sei se nossos bisnetos lerão “Guerra e Paz” e a “Divina Comédia” em folhas de papel ou em alguma forma muito mais simples, leve e barata de tela eletrônica. Não consigo mais ouvir a minha coleção de long plays, mas nem por isto deixei de ouvir música – e os melhores vinis que tinha foram recomprados em CDs, alguns só voltei a ter com o MP3. No futuro vai ser assim. As pessoas vão continuar a ler. Se vão ser livros de papel, de plástico ou lentes de contato hipertecnológicas com tela de computador embutida, é mera especulação. Serão ainda romances, contos e poemas, independentemente do suporte físico que terão.
Mas textos objetos de leitura fragmentada, por tópicos, já dispensavam o serviço do livro como é apresentado aqui nesse debate, haja vista a profusão de apostilhas e xerox que inundam o ambiente universitário.
Para além da questão do fetiche, que é importante, existe o conforto da portabilidade, do manuseio, do contato mãos/página/capa. Dificilmente uma traquitana eletrônica proporcionará tal prazer.
Hummmm …Impossível discutir isso a sério no espaço de um comentário … Mas o que me parece mais limitado nessa discussão é que tanto o Eco quanto o Chartier estão se referindo à leitura de um único livro. Só para lembrar: o conceito de hipertexto – no qual se baseia a Internet – foi criado pelo físico e matemático Vannevar Bush, em 1945, em um famoso artigo intitulado As We May Think.
Bush não se referia a qualquer forma de pensamento, mas ao pensamento científico. Segundo ele, a maneira como se organizavam as informações em uso na comunidade científica era artificial. Não pensamos por classificação, mas por associação, dizia ele. Nossa mente pula de uma representação para outra ao longo de uma rede intrincada, desenha trilhas que se bifurcam, tece uma trama complicada ao formar o pensamento.
Mesmo quando estamos submetidos a um ambiente rigidamente indexado e classificado, como uma biblioteca, traçamos nosso próprio caminho por dentro dele. Quando pesquisamos algum assunto, seja por meio de algumas palavras-chave, seja por meio da indicação de uma obra, puxamos o fio de uma meada na qual se apresentam várias outras obras (textos, imagens, sons). Ocorre, porém, que, no meio da leitura do texto, uma expressão, ou uma citação, chama a nossa atenção. Então, procuramos sua origem em outro texto. Este, por sua vez, pode nos remeter a outro e a outro, sucessivamente, enquanto vamos formando o corpo de nossa pesquisa.
Para dar conta do movimento mental realizado pelo pesquisador, Bush propôs a criação de um dispositivo, um imenso reservatório multimídia de textos, imagens e sons interconectados, que poderia integrar rapidamente novas informações. Seria quase uma massa viva de conhecimentos que funcionaria como uma espécie de memória auxiliar do cientista, chamada por ele de Memex.
Embora o Memex jamais tenha saído do papel, as idéias de Bush exerceram grande influência sobre os autores que, na década de 1960, foram os pioneiros do hipertexto: Ted Nelson, Douglas Englebart e Andries van Dam.
É isso o que encontramos hoje na Internet, o esboço de uma imensa midiateca. Ela não tenta reproduzir o movimento do leitor de um livro ou de um artigo, mas o processo de construção textual de um leitor que busca informações em vários livros – e também em outras mídias. É assim que a gente pensa, não é? Pulando de um assunto para outro, associando leituras e idéias, formando um corpo conceitual que é só nosso. Enfim, como eu já disse antes, não é assunto que cabia num comentário … rssssssss
Por enquanto, minha opinião é que não há nada de na Internet que já não tenha sido publicado em algum livro. Abro numa exceção para aqueles que já escrevem ou escreveriam e dobram seu trabalho escrevendo também nesse mídium (como certos blogueiros). O resto é conversa de boteco. Por que precisaríamos de alguém que mude, para ficar no exemplo citado, uma passagem ou o final de Guerra e Paz? Para introduzir uma fala de Sílvio de Abreu ou de Gabriel, o Pensador? Ora, ora…
Fugu F.
É bem por aí…. Não estão debatendo o fim do livro mas o fim de narrativas lineares.
Acabar o livro “físico” é algo que eu não consigo imaginar…
Quando inventaram o cinema, disseram que o teatro estava com os dias contados. Não aconteceu.
Quando inventaram o rádio, disseram que o cinema estava com os dias contados. Não aconteceu.
Quando inventaram a televisão, disseram que o rádio estava com os dias contados. Não aconteceu.
Quando inventaram a internet, disseram que o teatro, o cinema, o rádio, a televisão, os jornais, o comércio e a história estavam com os dias contados. Não aconteceu.
O livro está no topo de toda esta “cadeia alimentar”. Não vai acabar.
Fugu F,
muito bom!
O problema maior da exacerbação do hipertexto é que, se você não tiver um objetivo muito específico e estiver apenas saciando a curiosidade, facilmente cai em um tipo de atividade masturbatória sem clímax, em que você começa a ler pedacinhos de diversos textos e nada inteiro. Isto é muito fácil de acontecer na internet. Na verdade aqui há duas discussões:
a) o hipertexto mata o texto?
b) está o livro de papel com os dias contados?
A primeira é muito fácil de responder. O hipertexto pode matar aquele horroroso acúmulo de notas de rodapé com citações bibliográficas que atrolha qualquer trabalho que se arvore de alguma cientificidade (e aqui caberia um hiperlinkpara comentar a estupidificação dos ditos trabalhos científicos produzidos por alunos e professores de nossas universidades apenas com uma seqüência de citações “ad nauseam”.) porém por mais que seja hiper, ainda tem por base (não somente) um texto. O hipertexto é pura e simplesmente uma nova tecnologia de escrita, perfeitamente adequada a textos científicos e jornalísticos e, a priori, não à literatura, ainda que, possam vir a ser feitos projetos específicos de literatura hipertextual, que poderiam ser muito interessantes. Só de falar já me vêm à cabeça duas obras que poderiam ser lembradas como ancestrais de uma literatura hipertextual: Rayuela (O Jogo da Amarelinha) de Júlio Cortázar e O Dicionário Kazar, de Milorad Pavich (não achei o livro para confirmar o nome do autor).
A segunda é uma questão tecnológica. O papiro com seus livros em forma de rolo era considerado insuperável na antiguidade. Por uma questão de praticidade foi substituído pelo pergaminho (o papiro só cresce no Nilo, enquanto couro de carneiro pode-se obter onde quer que haja pastagens). Devido à dificuldade de se emendarem os couros para produzir rolos, foi inventado o livro que só muito mais tarde veio a ser de papel. No Japão já existem umas telinhas de mão onde o pessoal lé livros e mangás eletrônicos em formatos semelhantes ao PDF (o Fantástico também informa, às vezes). Nada impede que estes venham a ser o ancestral de pagers muito mais sofisticados e baratos que venham a substituir o livro de papel. O custo na verdade não é um grande problema. Imagine que você vai pagar o preço de dois best sellers por um aparelho que vai permitir a leitura de um número potencialmente infinito de obras (ligue agora e ganhe as obras completas de Sidney Sheldon e Harold Robbins!). Sem dúvida pode-se pensar que algo assim poderia se tornar tão popular como o rádio transístor, o walkman ou mesmo o livro. O que acontece é que quando algo quebra nossos paradigmas, nossa tendência é partir para uma reação emocional de negação. Eu tenho até hoje guardada aqui em casa uma maravilhosa máquina de escrever HP word processor com memória para até 10 páginas, verificador de ortografia em inglês, tecla corretora e o escambau. Maravilhosa. Só que obsoleta. Assim como os LP, as fitas cassete (K7, lembram?), os gravadores de rolo, aqueles disquetões caríssimos Iomega Zip, os disquetes grandões… O livro pode estar sim indo por este caminho. Se for, daqui a alguns anos esta discussão poderá ser lembrada como uma curiosidade anacrônica…
PS: também adoro livros!
Renato: durante muito tempo eu tive a fantasia de escrever um roteiro hipertextual para a Vida Modo de Usar, do Perec. Acabei desistindo.
Livro digital não vai deslanchar até o momento em que se crie um suporte tão agradável – e em muitos casos belo – a leitura como atualmente é o livro em papel.
Manuais técnicos como o Guia foca Linux que uso no Palm, sim. Porque não são como romances que vc lê – geralmente – começo, meio e fim.
Manuais técnicos em formato digital tem a vantagem de seu “leitor” (no Palm uso o Plucker) possuir um sistema de busca por determinado capítulo, parágrafo, tema, etc. que facilita em muito nosso trabalho. Melhor do que ler o sumário ou índice remissívo de um livro convencional. Manuais técnicos não precisam ser lidos do começo ao fim. Dicionários também funcionam muito bem em suportes digitais.
abrs,
Concordo com o Iao. Mas acho que este suporte mais agradável pode não estar longe de ser inventado.
Saudações
Renato