Porque toda crítica é baseada nesta equação: CONHECIMENTO + GOSTO = JUÍZO SIGNIFICATIVO. A palavra-chave aqui é “significativo”. Pessoas que reagem fortemente a uma obra – a maioria de nós o faz – mas não têm uma erudição mais ampla que lastreie essa opinião não são críticos. (É por isso que grande parte das resenhas feitas online por leitores não constituem propriamente crítica.) Tampouco são críticos aqueles que têm uma tremenda erudição, mas não o tipo de gosto ou temperamento que poderia conferir a seu juízo autoridade aos olhos dos outros, daqueles que não são especialistas. (É por isso que tantos estudiosos acadêmicos se saem mal escrevendo resenhas para grandes audiências.) Como qualquer outro tipo de escrita, a crítica é um gênero que requer do praticante um talento específico, e as pessoas que têm esse talento são aquelas em quem o conhecimento se cruza de modo interessante e persuasivo com o gosto. No fim das contas, o crítico é alguém que, quando seu conhecimento, mobilizado por seu gosto, se vê na presença de um novo exemplar do gênero pelo qual se interessa – uma nova série de TV, filme, ópera, balé ou livro – saliva para atribuir sentido a essa nova coisa, analisá-la, interpretá-la, fazê-la significar algo.
Coisa linda o autoproclamado “manifesto” pró-crítica jornalística – gênero, se não moribundo, gravemente enfermo – que o crítico e jornalista Daniel Mendelsohn publicou ontem no site da revista “The New Yorker”, bíblia da grande crítica jornalística. A motivação mais imediata do artigo é o debate provocado nos círculos literários americanos por uma resenha especialmente venenosa sobre dois livros da jovem escritora canadense Alix Ohlin saída há poucos dias no “New York Times” – a mesma que motivou o texto de J. Robert Lennon que traduzi e comentei aqui na segunda-feira.
O pano de fundo em que o artigo de Mendelsohn se insere, porém, não começou a ser tecido ontem: tem pelo menos dez anos esta nossa paisagem cultural instável em que se destacam o esvaziamento da “autoridade” do crítico midiático diante da amplificação da voz de milhões de leigos, traço marcante da cultura digital, e a mistura de refutação (pró-autoridade) e concordância (contra a autoridade desprovida de títulos acadêmicos) que vem caracterizando a resposta ambígua da crítica universitária ao fenômeno.
Se o “manifesto” será visto no futuro como epitáfio ou certidão de renascimento da arte de Pauline Kael e sua turma, críticos-jornalistas que Mendelsohn homenageia um por um, vai depender de dinâmicas que não são apenas culturais, mas sobretudo de mercado. O certo é que o texto já justifica sua existência ao demonstrar o grau de besteira que assola o recente debate sobre crítica negativa x crítica positiva, detonação cruel x exaltação bobinha de rede social.
Um crítico de arte que se preze, lembra Mendelsohn, vai ser duro quando precisar ser duro e elogioso quando for o caso de ser elogioso, pois seu compromisso não é com o artista, nem mesmo com o leitor, mas com a arte pela qual é apaixonado. Elogiar por qualquer razão um objeto que não esteja à altura da tradição dessa arte é, para o ideal platônico do crítico-jornalista, uma traição tão odiosa quanto – seja por motivos pessoais, políticos ou ideológicos – deixar de reconhecer a excelência do que tem excelência.
Naturalmente, o rigor interno dessa lógica não basta para garantir sua sobrevivência. Os valores em que se baseia não são absolutos nem eternos, mas historicamente determinados, e portanto passíveis de substituição por outros valores não absolutos, historicamente determinados. De pouco adianta a um sacerdote sua fé inquebrantável se o templo, como previa Gore Vidal, ficar vazio. Vamos aguardar.
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Sobre a “gentileza” da crítica e outras questões, compartilho o interessantíssimo link enviado por um leitor, a propósito daquela polêmica marqueteira Paulo Coelho x James Joyce.
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A ilustração ali em cima faz parte da divertida série de anúncios publicitários de produtos contemporâneos com estética antiguinha criada pelo blog de design Lava 360. Será que a crítica jornalística cultuada por Mendelsohn, cheia de prestígio, lastro e ressonância cultural, está destinada a parecer igualmente extemporânea dentro de poucos anos?
11 Comentários
Escrevi um comment do post anterior sem ter lido este. Que maravilha, tivesse lido e nem teria postado o que escrevi, naum precisava, abs
Vale lembrar de que Eliot definiu a função da crítica como uma “correção do gosto”. Perfeito.
O conteúdo da crítica nem sempre tenha significado verdadeiro, mas abstrato, já que o que importa é “agradar e atrair o leitor”, independentemente da validade do que se diz.
É por isso que a Veja está de parabéns.
Possui críticos-mor por excelência.
Caramba, interessantíssimo link mesmo 🙂
Muito inspirador seu post, me levou a muitos lugares, na rede e imaginários (são quase sinônimos, aliás 🙂 um abraço, merci, clara
Deveras marxista.
Oi, Sérgio.
Só queria compartilhar, se ainda não viu, a análise que o Vinicius Castro fez da retórica (e de outras coisas) do Idelber sobre o assunto Coelho X Joyce.
http://derivativo.blogspot.com.br/2012/08/idelber-avelar-contra-as-malvadezas-do.html
Obrigado, Leonardo. Ótimo constatar que até as polêmicas mais idiotas, como essa puxada pela dupla Coelho & Avelar, podem gerar boas reflexões. Um abraço.
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