Na entrevista que Kurt Vonnegut (1922-2007) deu à “Paris Review”, lida há muitos anos, há um trecho que nunca me saiu da cabeça. Nele o escritor americano, autor de “Matadouro 5”, faz com a verve que lhe era característica uma defesa da boa e velha contação de histórias:
Garanto a você que nenhum esquema narrativo moderno, nem mesmo a ausência de enredo, dará ao leitor satisfação genuína, a menos que uma daquelas tramas à moda antiga seja contrabandeada para dentro da história. Não defendo a trama como representação acurada da vida, mas como forma de manter o leitor lendo. Quando eu dava aulas de criação literária, costumava recomendar aos estudantes que fizessem seus personagens desejar alguma coisa imediatamente – mesmo que apenas um copo d’água. Personagens paralisados pela ausência de sentido da vida moderna ainda precisam beber água de vez em quando. Um dos meus alunos escreveu um conto sobre uma freira que ficou com um pedaço de fio dental preso entre os molares inferiores e não conseguia se livrar dele o dia inteiro. Achei isso maravilhoso. A história lidava com questões muito mais importantes do que fios dentais, mas o que mantinha os leitores presos era a ansiedade de saber quando o fio dental seria finalmente removido. Era impossível ler aquele conto sem sentir um incômodo entre os dentes. (…) Se você exclui a trama, se elimina o desejo de alguém por alguma coisa, você exclui o leitor, o que é uma coisa muito feia de fazer.
Não sei se a última frase, com sua generalização implacável, estará correta: há leitores de todo tipo e alguns deles devem sentir prazer com histórias (vamos manter a palavra, à falta de outra) absolutamente destituídas de conflito, desejo ou mesmo personagens, blocos de arte conceitual em que tudo o que se passa na página ocorre num plano meramente formal. Excluir essa possibilidade também seria um erro: se a literatura for alguma coisa, será o reino da liberdade autoral absoluta.
O que acredito que Vonnegut quis dizer é que, ao eliminar o personagem e seu desejo por algo que ele não tem – condições básicas para se estabelecer com o leitor um pacto narrativo de suspense e, por fim, (in)satisfação –, a literatura exclusivamente conceitual deixa ao relento uma imensa maioria de leitores. Isso me parece inquestionável e não vale apenas para o realismo: nada impede que, em vez de um copo d’água, o personagem deseje com ardor e acabe conseguindo, sei lá, cavalgar um unicórnio ou se transportar para dentro de um videogame.
Uma rápida consulta às listas dos livros mais vendidos, quase todos feitos de trama pura ou quase isso, basta para comprovar o que foi dito acima. O que complica a questão é que essa preferência popular tão categórica pela contação de histórias leva muita gente – sobretudo críticos, mas também escritores – a menosprezar o enredo, o entrecho, a intriga, o mistério, a surpresa como ferramentas menores da literatura, recursos identificados com o lado ingênuo ou menos sério da arte. Algo que deve ser eliminado ou, no mínimo, não sendo merecedor de grande atenção, resolvido rápida e porcamente a fim de deixar o terreno livre para o que de fato importa – seja lá o que isso for. Não duvido que em tal erro de julgamento resida parte da explicação para que as listas de mais vendidos do início deste parágrafo estejam há anos tão melancolicamente despovoadas de brasileiros.
A ideia de “contrabando” sugerida por Vonnegut me parece uma estratégia artística mais inteligente. Aquela freira às voltas com seu fio dental torturante pode ter vivido ao longo do conto, que não nos é dado conhecer, todo tipo de conflito casca-grossa – teológico, sexual, linguístico, cognitivo, o diabo –, mas o leitor se veria menos disposto a acompanhá-la em tais profundezas se não estivesse preso à história pelo fio prosaico que ela traz entre os dentes. Estamos diante de um inequívoco MacGuffin.
Termo mais conhecido pela turma do cinema, MacGuffin é uma palavra popularizada por Alfred Hitchcock para designar aquele elemento da história que impulsiona a ação dos personagens e que, no fim das contas, descobrimos não ter tanta importância assim, pois o verdadeiro foco da narrativa era outro. O que vale para o cinema e a TV vale também para a literatura – ou para qualquer forma de contar histórias. Não por acaso, um MacGuffin clássico é a estatueta que dá título ao romance “O falcão maltês”, de Dashiell Hammett, e também ao filme de John Huston nele baseado (batizado de “Relíquia macabra” no Brasil). Descobrimos perto do fim que a preciosidade em nome da qual tanto sangue foi derramado é falsa, mas isso já não tem muita importância.
Uma boa frase de autoria duvidosa, popularizada por John Lennon na canção Beautiful boy, sustenta que “vida é aquilo que acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos”. Pois história – ou pelo menos um tipo bastante interessante de história – é aquilo que acontece enquanto estamos ocupados imaginando o que será feito do MacGuffin. Nesse meio tempo pode acontecer nas páginas o que o autor quiser ou puder fazer acontecer, inclusive a arte literária mais rigorosa e exigente. Com a vantagem de que, nesse caso, o leitor vem junto.
4 Comentários
Sérgio, um dos melhores livros da Agatha Christie, ‘O Assassinato de Roger Ackroyd’, foi muito criticado (chegaram a chamá-la de desonesta) por causa da “isca” usada para fisgar os leitores.
(SPOILER
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o assassino é o narrador
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FIM DO SPOILER)
Reviravoltas sempre geram controvérsia. Como no exemplo do falcão maltês, a jornada até aquele desfecho é que vai fazer toda a diferença.
Sérgio,
Não é de hoje que alguns escritores nossos ´parecem ter vergonha de criar uma história. Fico pensando se, em certos casos, falta a capacidade para contar bem uma história. Eu sei que o escritor tem o direito de produzir o seu texto da maneira que lhe convier. Respeito esse direito, mas me dá um prazer incomparavelmente maior ler romances e contos que tenham uma trama e que seja bem desenvolvida pelo autor. Daí, por exemplo, a literatura de Lígia me atrair muito mais do que a de Clarice. Um abraço.
Francisco Sobreira.
Sérgio, tenho aprendido bastante o acompanhando. Acho que um bom exemplo para clarear este último parágrafo é o livro “Uma casa para o senhor Biswas”. Abr!
Quando eu era adolescente, li um conto do Luís Jardim (acho)em que uma moça, residente em fazenda, à noite ficava na janela olhando as luzes distantes do povoado e sonhava com um mundo maravilhoso e absolutamente inatingível. Até hoje, quando vejo uma cidade perdida no horizonte, relembro esse texto – não da trama, mas do meu envolvimento emocional com a personagem. Acho que são detalhes assim que dimensionam o valor de uma obra: a perturbadora sensação de que você foi marcado indelevelmente por um sentimento que nunca mais se repetiria.