Trata-se de uma espécie de “Sobre a arte de jogar pedra nos clássicos – parte 2”: na revista eletrônica Salon.com, o escritor Kyle Minor sai em defesa da contista canadense Alice Munro (foto), que foi esculachada dos pés à cabeça por uma resenha de Christian Lonrentzen na prestigiosa London Review of Books (os dois textos em inglês, acesso gratuito).
Alice Munro atingiu um lugar de proeminência literária, e quando um escritor atinge um lugar de proeminência literária, pode acontecer que um crítico encarregado de resenhar seu novo livro se sinta tentado a transformar a encomenda numa oportunidade de fazer uma declaração bombástica sobre o tal escritor proeminente – e dessa forma fazer uma declaração bombástica sobre a literatura contemporânea, a cultura literária contemporânea ou a crítica literária contemporânea.
Há dois caminhos comuns pelos quais esse tipo de declaração bombástica pode dar errado – o da santificação e o da iconoclastia. O crítico do tipo santificador despeja sobre o escritor uma ducha de elogios incondicionais, declara-o um gênio e ignora seus defeitos – ou diz que eles são virtudes. O outro tipo de crítico talvez decida que o modo mais seguro de esvaziar o balão de uma reputação hiperbólica não é apenas deixar um pouco de ar escapar. Não, pode ser mais satisfatório – além de chamar mais a atenção – atacá-lo com um lança-chamas.
Christian Lorentzen, um dos editores da “London Review of Books”, usou as cerca de 3 mil palavras que lhe foram encomendadas para a resenha de “Dear life”, a 14ª coletânea de contos de Alice Munro, como uma oportunidade de corrigir o que talvez tenha identificado corretamente como uma cultura de santificação acrítica que hoje parece saudar cada novo livro de Munro. Mas o modo que escolheu para expressar sua correção foi uma resenha cruel e terrivelmente equivocada, um antiquado trabalho de carnificina que desdenha, ridiculariza e cinicamente treslê uma carreira que prospera placidamente há 45 anos.
Minor não precisaria se esforçar muito para conquistar minha simpatia nessa briga. Considero Munro uma baita contista. No trecho abaixo, porém, ele toca no que me parece ser um dos grandes nós do trabalho de apreciação crítica de literatura – mesmo quando o crítico está imbuído do maior espírito de justiça:
Há um ponto em que a resenha de Lorentzen acerta, uma verdade que merece ser apregoada aos quatro ventos: nenhum escritor merece reverência. Um conto ou um romance pode conquistar um tipo de reverência, mas se o ponto de partida crítico é a reverência, torna-se impossível descrever o que, na obra, induziu essa reverência (…) [Mas] a preocupação de Lorentzen se projeta numa direção ligeiramente errada. O problema não começa quando um escritor é “elogiado demais”. O problema começa quando um conto ou romance já não pode ser lido porque o leitor está ocupado demais lendo sua própria ideia preexistente sobre o escritor.
A última frase merece ser impressa e colada na parede diante da mesa de trabalho de todo crítico. Simpáticos ou hostis ao autor até o momento de abrir o livro, o maior desafio de todos nós – talvez até, em determinadas situações, intransponível – será sempre ler o texto, não o escritor.
Um comentário
Sergião sempre matando a pau! Parabéns, xará. Abraço.