Uma vez que este blog vem reincidindo nos últimos tempos – de forma não planejada e até meio misteriosa para mim, mas indiscutível – na discussão de aspectos técnicos do ofício de escrever, como se fosse uma espécie de oficina online, talvez não seja descabido supor que um texto se encaixe no outro para formar algum tipo de conjunto coerente. Ainda que possa ser cedo para dizer que tipo de conjunto e coerência.
Para deixar isso claro puxo um fio do artigo da semana passada: o trecho em que, citando de memória um ensaio da escritora canadense Margaret Atwood, falo da capacidade que tem a literatura de “pintar cenários grandiosos com base em quase nada, a chaminha trêmula de um palito de fósforo passando por grande incêndio”. Quem enfatiza esse mesmo ponto com uma boa tirada é um escritor mineiro que estaria fazendo 88 anos hoje, se não tivesse morrido em 2012: em seu livro “Uma poética de romance” (Rocco), Autran Dourado afirma ser o romancista aquele que “com um tiquinho de pólvora faz uma girândola, com um gritinho apronta um escarcéu”.
A ideia que Autran defende nesse trecho – e em todo o livro, uma reflexão sobre os bastidores da criação que é bastante incomum na literatura brasileira – é a de que, no caso dos romancistas, a linguagem deve estar sempre subordinada ao projeto mais amplo da narrativa. Um escritor não tem que saber por que a pólvora é explosiva, bastando que com um pouquinho dela crie a ilusão de um espetáculo pirotécnico. Se não precisa ser um cientista, tampouco lhe cabe o papel de sábio ou “filósofo”, como diz o autor de “O risco do bordado”. Seu único compromisso é com a obra: “Se o romancista emprega as técnicas das ciências na feitura dos seus personagens e do livro, ele o faz preocupado com a arquitetura, com a estrutura e a mecânica do romance”.
Óbvio? Sim, mas o que sobressai nos ensaios metalinguísticos de Dourado é um traço bem pouco enfatizado nas discussões literárias: a humildade. Não a humildade como ausência de vaidade – algo que seria, vamos admitir logo, praticamente inconcebível no mais franciscano dos escritores –, mas a humildade como reconhecimento de que a narrativa é mais importante, e sabe mais sobre si mesma, do que o próprio autor. “É preciso ter grande modéstia e humildade, a humildade dos criadores”, escreve ele, “para reconhecer a excelência das coisas, a importância mesmo das banalidades, porque o substantivo é banal, ao contrário do adjetivo. A palavra pode ser rara, mas a coisa que ela designa é sempre banal – coisa.”
Desse elogio da banalidade e do respeito quase religioso à autonomia da máquina ficcional, que podem parecer esquisitices talvez datadas, o autor destila uma crítica que me parece de grande utilidade a duas tentações opostas do estilismo: a da linguagem clássica, limpa, “perfeita” (que para Autran teria Machado de Assis como patrono), e a da linguagem bombástica, barroca, rebuscada (elevada à estratosfera por Guimarães Rosa). Ambas, por assim dizer, traem a obra porque apontam para si mesmas. Rosa é tratado com especial severidade, embora o ensaísta se declare seu admirador: “Há em Guimarães Rosa um lado Rui Barbosa, um lado Euclides da Cunha, um lado Coelho Neto…”.
Essa ostentação verborrágica, esse excesso transbordante da linguagem, é um traço do autor de “Grande sertão: veredas” que seria difícil negar, embora se possa, claro, defendê-lo como indissociável de seu projeto estético. Mas não para Autran, que vê ali um pecado, uma sobra. Está convencido de que “‘o estilo é o homem’ foi uma frase que quase botou a perder a maioria dos escritores brasileiros, os de Minas sobretudo, que quiseram fazer ‘estilo’, esquecidos de que na verdade ‘o estilo é o assunto ou matéria’”.
Nesse ponto voltamos novamente ao artigo de sábado passado, mas agora para corrigir – ou pelo menos complicar – uma das suas afirmações: a de que o detalhe concreto é sempre preferível ao lugar-comum totalizante. Bom, nem sempre. Autran Dourado está aí para virar a mesa e lembrar que o lugar-comum figura entre as banalidades com que um romancista precisa lidar, se assim exigirem seu narrador e sua narrativa: “Não, eu não poderia me permitir escrever bem, compor uma prosa enxuta, de bom gosto e sóbria, equilibrada, tentação de todo escritor mineiro. (…) Eu tinha de correr mesmo o risco do lugar-comum, do aparente mau gosto e do desequilíbrio, a fim de conseguir uma linguagem mais compromissada com a narrativa do que com a boa prosa…”.
Pois é: até o “calor senegalesco”, quem diria, encontra um escritor de talento para defendê-lo. Ninguém disse que seria fácil.
7 Comentários
Coluna bastante esclarecedora, caro Sérgio. O Autran está entre os bons escritores brasileiros. Aliás, aqui sou obrigado a discordar do Diogo Mainardi, que certa vez afirmou ser o Machado o “único” escritor brasileiro. E o Graciliano? O Gimarães Rosa? O Lúcio Cardoso e vários outros? Como podemos afirmar que o Machado é o único? Mas, polêmicas à parte, devo recordar ainda que o Autran disse algo muito sério entre outras coisas: escritor é aquele que escreve com dificuldade. E eu concordo. Quem imagina que um escritor se senta e escreve um monte de páginas e histórias da noite para o dia está enganado. Basta a gente ler Cartas Exemplares, do Flaubert, para entender mais ou menos o que significa a verdadeira prática de escrever. E o lugar-comum pode, sim, fazer parte disso tudo.
Além dos livros que o Sérgio menciona, outros ótimos trabalhos do Autran: Os Sinos da Agonia e Ópera dos Mortos.
Bela lembrança essa de Autran Dourado, o sujeito de escreveu o excepcional “Os sinos da agonia”. E, de fato, tirando esse e aqueloutro, Minas vive num mar de pRosas.
Ah, sim, bem a propósito: Autran Dourado tem um conto chamado “Os mínimos carapinas do nada”. Nonadas.
Boa literatura é aquela que nos agrada. Assim como existe os estilos de escritas, existe os estilos de leituras. Convenhamos, para as aulas de português ou literatura, quantas vezes tivemos que ‘sofrer a leitura’ de clássicos, que nada nos diziam. Uma vez um nos nossos escritores disse: existem dois tipos de livros: aqueles que pegamos e não largamos mais e, aqueles que largamos e não pegamos mais!
Sérgio Rodrigues,
faltou mencionar que o Autran Dourado foi membro e militante do Partido Comunista (tal qual o Graciliano Ramos)
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O Guimarães Rosa, ao que parece, carregou e carregará um karma com os comunistas, para sempre
(o Graciliano teve a”ousadia” de negar um 1º lugar a um Sagarana anônimo, na década de 30, ante o protesto indignado dos outros membros do júri…mas não adiantou o voto de minerva era do velho escritor comunista alagoano)
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Portanto, acho que o Autran Dourado defendia, na verdade, contra os seus conterrâneos mineiros, era o LUGAR-COMUNA na literatura (locus comunistus)
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