Como ocorre nos engarramentos, que se espalham rapidamente embora sua origem nem sempre seja fácil de determinar, a idéia de que os carros retidos num congestionamento de trânsito estão presos como o líquido numa garrafa, ocupando todos os espaços e condenados a sair lentamente, por um gargalo estreito, é uma metáfora que se espalhou pelas línguas latinas ali pelo início do século passado.
Provavelmente jamais saberemos com certeza qual foi o país que, diante daquele efeito colateral do desenvolvimento urbano, usou primeiro a imagem da garrafa (palavra antiqüíssima, vinda ao que tudo indica do árabe). O certo é que a idéia existe também no francês embouteillage, no espanhol embotellamiento e no italiano imbottigliamento. Todos eram termos existentes desde o século 19 em sua acepção literal de “ato de meter em garrafas”, mas passaram a fazer hora extra como sinônimo de tráfego lento ou bloqueado quando os automóveis começaram a se popularizar.
Os primeiros registros desse uso em francês datam dos anos 1920. Um pouco antes, por volta de 1917, começara a fazer sucesso no inglês a expressão traffic jam, que carrega o mesmo sentido e evoca imagem semelhante: a palavra jam tem entre suas acepções a de atochar, comprimir algo num recipiente até a borda (desse tipo de acondicionamento surgiu o significado de “geléia”). Como os carros que se espremem numa via pública até nenhum deles poder se mexer.
A palavra é antiga, o desconforto também, mas não o pânico. A garrafa que nossos avós julgavam cheia na época do Ford Bigode parece, agora sim, prestes a explodir de tão abarrotada. A tal ponto que uma inusitada imagem poética cunhada por Aldir Blanc em 1972, na canção Transversal do tempo (“acho que o amor é a ausência de engarrafamento”), soa cada vez mais como expressão de uma utopia romântica: bela, mas inatingível.
Publicado na “Revista da Semana”.
13 Comentários
Tenho ouvido dizerem também “engargalamento”, mas não vi referência alguma ao termo no Houaiss.
Nas histórias em quadrinhos da DC Comics, tem uma cidade [Kandor] engarrafada. É um dos grandes fardos do Superman que não consegue tirá-los do que ele chama de prisão.
Acho que a idéia de prisão para um engarrafamento faz bastante sentido.
[]s
Em inglês, há algo na mesma área semântica: “[traffic] bottleneck.” Embora se refira especificamente ao “gargalo,” creio que a palavra é usada comumente como sinônimo de “engarrafamento.”
É o gargalo, Curiango, o ponto de estreitamento. Não o congestionamento, que esse é traffic jam mesmo – ou, quando muito, snarl-up, traffic hold-up, por aí.
Sérgio: é claro que concordo com o que você diz – pode ver isto na minha nota anterior. Mas eu estava pensando apenas no possível universalismo da “metáfora garrafal” para descrever congestionamento de trânsito.
Em catalao, a palavra seria “embús” (isto é: entupimento).
Caro Josep, obrigado pela informação. Uma coisa parece certa em meio a tantas garrafas, gargalos, entupimentos: o trânsito é líquido. Quando não engarrafa, flui. Abraços.
Só não digo que agora verei o engarrafamento com outros olhos porque eles continuarão vermelhos e ressecados graças à poluição paulistana. %-) (simulação de emoticon de olhos ressecados… ah, ficou parecido sim).
Um mar de carros…
Sérgio, mudando de assunto, adorei ler você no Globo, tomara que continue lá.
Obrigado, Noga. Também gostei do convite para visitar uma velha casa minha. Mas é visita ocasional. Um abraço.
Perdoem-me por não me ater à palavra em comento, mas há algum trago uma dúvida de prosódia que os dicionaristas não resolvem, ao menos os que busquei (Aurélio – Ed. antiga, Houaiss, VOLP, Caldas Aulete – Mini, Priberam). Qual o som do “x” na palavra “mixórdia”? Deve ser algo muito óbvio, pois todos os dicionários que consultei omitem.
Abraços,
Camilo, o x de mixórdia se pronuncia como o de mexer, mexicano, mixaria.