Antes que o ano vire, transformando o talão de cheques numa armadilha para o automatismo da mão apegada ao passado recente e, em sábia compensação, tornando cada vez mais raro à medida que o século envelhece o próprio uso desse mico-leão-dourado analógico chamado talão de cheques;
Antes, portanto, que seja tarde demais para dar a uma frase longa e convulsa como a do parágrafo anterior o desconto do urgente espírito retrospectivo impressionista que baixa todo fim de ano sobre escribas dos mais variados estilos e confissões;
Antes, enfim, que estourem fogos e rolhas e sacos, declare-se aqui com a clareza permitida pela ressaca do último espumante que, das leituras que fiz em 2008, não só o já mencionado “Austerlitz” merece citação nominal pela capacidade de se manter na memória;
Pois haveria grande injustiça em não lembrar livros como “Sem sangue” (Companhia das Letras), de Alessandro Baricco, e “Black music” (Objetiva), de Arthur Dapieve, duas novelas curtas tão diferentes e ao mesmo tempo tão curiosamente conectadas, com seu recheio de violência extrema e suas cenas finais de sexo carregadas de uma simbologia estranha, de uma luz triste mas ainda redentora – no caso do italiano, a cópula reinventada como agridoce vingança; no do brasileiro, o boquete inaugurado como um exercício de profundo humanismo;
Como seria também absurdo deixar passar sem menção dois livros que merecem ser lidos como grandes romances, embora em sentido estrito não o sejam, mas duas longas, ambiciosas e muitíssimo bem escritas reportagens: O santo sujo (Cosac Naify), de Humberto Werneck, sobre Jayme Ovalle, e “Os irmãos Karamabloch” (Companhia das Letras), de Arnaldo Bloch, sobre a ascensão e queda de um império familiar; dois livros que ajudam a borrar as fronteiras cada vez mais borradas entre a História e as histórias, a pesquisa e a invenção, e de quebra nos ensinam que o destino é capaz de ter lá suas benevolências, feito a de plantar um estilista como Werneck no ponto de convergência de tantos vetores folclóricos ovallianos ou o de pôr no fim da linha de decadência empresarial dos Bloch um escritor de talento para imortalizar sua saga mais que romanesca;
Antes, assim, que 2009 nos deixe um pouco mais próximos do futuro sem literatura – “daqui a dez ou vinte anos” – previsto na “pergunta para si mesmo” que o jovem escritor americano Gary Shteyngart, com veia irônico-catastrofista, faz e responde na excelente terceira edição da “Granta” brasileira (Alfaguara), convém lembrar que o mesmo ano que levou prematuramente David Foster Wallace deixou Machado de Assis mais vivo do que nunca, o que de alguma forma parece suficiente para provar que todas essas profecias apocalípticas da moda não passam de galhofa infinita, ainda que escritas com a tinta da melancolia;
E lembrar, de resto – em meio a tantos livros que ficaram na fila para serem descobertos após a virada do calendário, como afinal deve ser mesmo –, que o “Diário de um ano ruim”, de J.M. Coetzee, saiu por aqui num ano bom. Feliz 2009 a todos.
O blog voltará a ser atualizado no dia 2 de janeiro.
14 Comentários
Baricco está na minha lista. E um feliz 2009 pra você também, Sérgio. Beijos, Isabel
Feliz 2009 ao escribas! Grande novo ano pra ti, Sergio!!
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Achando espaço para uma pequena reclamação: cadê o começos inesquecíveis de ontem?
Quantos “;”! Viva o “;”! Contei oito aí em cima!
Feliz 2009, todo mundo!
Não acredito no fim da literatura [o sempre jovem Blanchot já conjeturava sobre isso em seu Livro por vir], creio sim em sua nova encarnação, uma transmigração que pode [e deve] lhe ser muito saudável. Que venha 2009!
Sérgio, quem sabe acontece o contrário: um tédio por excesso de mídias revalorize o encanto íntimo da literatura, não custa sonhar. Tem acontecido comigo, ou, quem sabe, é só falta de um bom clube de dvd aqui na Serra. Tudo de bom pra vc também!
Abraço/ N
Sem Sangue também foi um dos livros de minha lista esse ano. É realmente uma novela fantástica e chocante. E choca, inclusive, pelo confronto inicial do título “sem sangue” com o início sangrento.
Engraçado que eu nem cheguei a comprá-lo. Entrei numa livraria, sentei no chão e comecei a ler. Terminei ali mesmo.
Feliz Ano Novo para todos. E obrigado ao Sérgio Rodrigues por garimpar para nós essa literatura que está para morrer desde que nasceu. Que todos possam ter bastante tempo para ler à vontade em 2009. Se os malucos que pelo mundo à fora ficam matando gente pelos pretextos mais fajutos adquirissem um pouco de senso e descobrissem que é bem melhor ficar quietinho em casa lendo algo interessante, seria muito bom – mas isso é querer demais, até a ficção tem limites. Assim como a literatura, a estupidez humana não vai desaperecer. Então, mero leitor, autor quando muito de comentários capengas em blogues, só me resta repetir para a gente boa que frequenta este arraial: feliz ano novo.
Bom 2009 Sérgio, com todo mundo proseando!
Já está ali na esquina! Abss!
Caros Isabel, Tiago, Noga, Klaus (os Começos Inesquecíveis voltam assim que for restaurada a normalidade do calendário, pode anotar aí), Claudio, Leonardo, Daltro, Eric e todos os demais leitores que nos últimos dias deixaram aqui seus votos de um feliz 2009, muito obrigado. Que no ano que vem (daqui a pouco!) a gente continue a se encontrar aqui no Todoprosa. Abraços.
Feliz 2009 para todos.
A você, Sérgio, e a todos que visitam suas palvaras sempre tão sábias, um 2009 maravilhoso!
=)
Queria ter esse fôlego para leituras tbm… As dicas estão anotadas!
=)
Feliz 2009!
Oi, Sergio! Tudo de bom pra vc e a família em 2009!
Também adorei o livro do Arnaldo Bloch, eu trabalhei lá, né?, e antes de mim o meu pai, que ele menciona no livro, Justino Martins.
Registro aqui o meu livro favorito de 2008, “Acenos e afagos”, do Noll. Vale cada letra, cada frase.
Beijocas