“Fulano escreve bem, mas não tem o que dizer.”
Não lembro onde li a frase, muito tempo atrás – provavelmente numa resenha ou quem sabe em duas ou três, pois a verdade é que se trata de um semiclichê crítico. Junto com seu autor ou autores, minha memória deixou de registrar também o alvo ou os alvos da diatribe. Foi a frase em si que passou a me assombrar de tempos em tempos em meus primeiros anos de escritor tateante, como se expressasse uma advertência severa e uma verdade terrível.
Então não bastava aprender a escrever? Era preciso também ser possuidor de uma qualidade mais misteriosa, talvez inata, certamente existencial, quem sabe política, que parecia tão fugidia quanto assustadora? Eu acreditava levar jeito para aquela coisa de fazer literatura, sentia que as palavras me mostravam alguma obediência, mas… teria o que dizer? E como uma pessoa que não tem o que dizer descobre, inventa, encomenda, pega emprestado, vai à luta de algo para dizer?
Levou tempo para que eu descobrisse estar diante de uma questão falsa. Saber escrever e ter o que dizer são rigorosamente a mesma coisa, ou melhor, não existe na literatura – ou em arte alguma – a possibilidade de separar “como dizer” e “o que dizer”. Ou se tem o pacote completo ou não se tem nada. Mas essa sabedoria ainda estava distante para quem, batendo cabeça entre admirações contraditórias, passava pela fase da imitação.
Enquanto eu tentava tomar posse do estilo deste ou daquele autor admirado, hoje seco feito Hemingway e Hammett, amanhã barroco e rosiano, uma semana às voltas com doudos pontos-e-vírgulas colhidos em Machado, na outra cuspindo gírias e palavrões coletados em João Antônio e Rubem Fonseca, um dia cronista cômico, no outro mais pesado que um Dostoievski de ressaca – enquanto eu brincava assim, com a maior seriedade, era talvez inevitável que me assaltasse de vez em quando uma dúvida aterradora.
Quando a insegurança batia mais forte, eu era dominado pela suspeita de ser um Zelig das letras. A própria facilidade com que mimetizava tantos estilos, como o genial personagem camaleônico de Woody Allen, parecia então uma prova de que eu não tinha “nada a dizer”. Dominava o como – os muitos comos! – mas era tudo oco, casca vazia. E por que não seria? Minha vida, em termos objetivos, era comum, razoavelmente feliz, e naquilo que não era feliz vinha a ser mais comum ainda. Claro que, se um dia eu chegasse a publicar alguma coisa, não faltariam críticos para apontar o vácuo gritante: “Rá! Ele escreve bem, mas não tem o que dizer”.
Devo ter perdido um bom punhado de horas de sono com isso. Sim, eu sei: é ridículo. Mas não me parecia ridículo na época e duvido que pareça ridículo hoje a muitos jovens que decidem se aventurar na literatura. Tem se tornado mais arraigada do que nunca a ideia de que a arte é apenas um veículo, entre outros, de significados sociais preexistentes. Em vez de reconhecer seu núcleo irredutível, tratando-a como um valor em si, o ponto de vista dominante em nosso tempo é o de reconhecer que sua linguagem pode até ser sofisticada (para não dizer elitista, o que transforma qualidade em defeito), mas o que importa mesmo é o conteúdo, a “mensagem”. Como se aquilo que a arte diz pudesse ser expresso de outras formas – sociológica, política, crítica, panfletária, jornalística, histórica – sem perda de valor.
A atual hegemonia acadêmica dos estudos culturais e a supervalorização do conceito de lugar de fala (mais sobre isso aqui) fazem parte desse quadro de fetichização do “conteúdo autêntico” em detrimento da infinitamente artificiosa dimensão formal. Acredito que tal ideia contenha nada menos que o germe da negação da arte, do obscurantismo absoluto, mas ela tem passado por avançada e progressista. O século XX nos conduziu do pântano do esteticismo ao abismo do filistinismo.
Até conselhos bem intencionados como “Escreva sobre o que você conhece bem” e “Viva primeiro, escreva depois” reforçam a ideia de que para escrever literatura que preste é preciso desembarcar nela, como um viajante consumista voltando de Nova York, com uma bagagem recheada de valiosas “mensagens”. Tais conselhos podem ter sua utilidade, pois viver é sempre bom, mas artisticamente são furados. Fundam-se na supervalorização de um certo conteúdo – no caso, a experiência vivida – sobre a forma. Ocorre que o conteúdo, pouco importa se vivido, imaginado, sonhado ou lido, só existe através da forma e como expressão dela. Se alguém não sabe escrever, não tem o que dizer, e vice-versa.
O quê da literatura é fundamentalmente literário.
4 Comentários
Pensei na ‘lapidar’: “minha vida daria um romance”; bem, então, escreva-o e veremos se dá mesmo ou se está mais para novela ou nem isso…
Sérgio, ando atarantado com uma questão que se refere a uma das teses do livro “A literatura em perigo”, do Todorov. Ele fala sobre a tendência ao niilismo presente na literatura contemporânea, e partem daí muitas interpretações de críticos como Rodrigo Gurgel, Martim Vasques da Cunha etc. Neste texto, nos comentários, houve uma boa tentativa de discussão sobre o tema: http://www.revistaamalgama.com.br/02/2016/stoner-john-williams-heroi-silencioso/. Mas sem conclusões. Você enxerga tal tendência realmente… a literatura teria algum tipo de compromisso, um compromisso moral? Gurgel e Vasques me parecem claramente inclinados a admitir que sim, mas isso, de algum modo, me incomoda. Gostaria muito de saber sobre a sua visão relativa a este tema.
A provocação é boa, Delair. Para mim, por princípio, toda arte precisa ser, bem no fundo, livre e gratuita como um trocadilho adolescente; as graves leituras morais (e outras) são inevitáveis e até bem-vindas, mas vêm depois. O Nabokov tem uma frase interessante: “Estilo e estrutura formam a essência de um livro. Ideias grandiosas são besteira”. Esteticismo? Não creio. Sua provocação e seu interessante link me fizeram refletir mais sobre isso e acho que em breve terei algo mais consistente a dizer. Por enquanto, registro apenas minha profunda e visceral repulsa àquela tirada “crítica” sobre Machado, no texto de Martim Vasques da Cunha. Um abraço.
Ótima reflexão, como de costume. Já havia me deparado com esse tipo de ressalva em certas críticas, e também passei pela fase do terror pela suposição de que eu talvez tampouco tivesse o que dizer. Ler um crítico da sua estatura confirmando que o troço não passa de balela é balsâmico, rapaz!
Quanto à valorização do “lugar da fala” em detrimento do domínio da técnica, é interessante notar como as obras autotélicas escritas por representantes dessas minorias sociais não desfrutam do mesmo foco de atenção que recai sobre as obras “de denúncia”, socialmente engajadas, que esses autores porventura escrevam. Será que um autor como o nigeriano Chinua Achebe (ou o próprio Wole Soyinka) teria o prestígio atual (que, claro, é muito pouco se comparado ao de um Coetzee, por exemplo) caso suas obras não se voltassem para a questão colonialista? Caso fossem meros exercícios de estilo, ou se destacassem mais pela capacidade de fabulação, sem qualquer pretensão de se construir um panorama metafórico da condição social de seus pares? Isso me leva a pensar que, para se ser aceito no repertório de sambas-enredo dessa escola chamada “acadêmicos da sociologia”, não é necessário apenas integrar uma minoria social e historicamente oprimida, mas também (e, parece-me, sobretudo) afinar-se com a ideia de que a única forma de arte válida é a intervencionista.
De modo geral, a situação parece-me muito similar ao que ocorre quando consideramos a aceitação social de pichações e de grafites, tal como mostrado no excelente documentário “Pixo”: só estamos dispostos a endossar intervenções do “gueto” no cenário urbano quando estas se alinham com nossa concepção do que seja “arte válida”, o que amplia a genialidade de uma pichação numa das paredes do bloco de História da universidade onde estudo: “Isto é uma agressão estética!”