Com seu ritmo de cartum, uma temporada clássica dos Simpsons tem mais idéias espalhadas por um amplo espectro cultural do que qualquer romance escrito no mesmo ano. A velocidade, a densidade de informação, o leque de referências; a quantidade, a qualidade e a rica humanidade das piadas – tudo isso faz praticamente qualquer romance contemporâneo parecer lento, sorumbático, monótono e quase totalmente vazio de idéias.
…
Enquanto isso, a internet está rapidamente se tornando a biblioteca de Babel de Borges, o mar de histórias de Rushdie: tudo está ali, numa potencial relação promíscua com todas as outras coisas. Acontece tudo ao mesmo tempo, no mesmo lugar, sem qualquer hierarquia. É como se o espaço e o tempo tivessem entrado em colapso. É excitante – e assustador. Quem está capturando isso num romance? Porque é no romance que isso deve ser capturado. O romance pode tomar liberdades que a televisão não pode, moldar e estruturar a multiplicidade e o caos de modos que a internet não consegue.
Romancistas podem recorrer a essas novas formas de arte para encontrar novas estruturas e técnicas de contar histórias, como Joyce recorreu ao cinema. Mas quem está fazendo isso? Estranhamente, os modernistas parecem captar o momento presente de maneira mais acurada do que os últimos vencedores do Booker. “Finnegans Wake” soa como um pot-pourri de tudo o que jamais existiu, em tradução do Google. Mas John Banville e Anita Desai parecem apenas nostálgicos (por Nabokov, por Dickens, por virtudes tradicionais, pelo cânone).
Exageros argumentativos à parte, esse divertido ensaio (acesso livre, em inglês) do escritor Julian Gough na revista inglesa “Prospect” coincide muito bem com idéias que volta e meia defendo aqui. Gough critica o predomínio da escola trágica e circunspecta sobre a cômica e irreverente na ficção ocidental esteticamente ambiciosa, sobretudo a contemporânea. Se uma defesa tão apaixonada dos Simpsons faz dele um bárbaro, brinca, melhor ainda, porque o romance “literário” de hoje, como romanos da fase decadente do império, “precisa dos bárbaros, anseia secretamente por eles”.
22 Comentários
Hum…diria que está correto até a 10° temporada, depois o programa só degringolou.
Ainda bem que eu não compro mais “romances de hoje”. Aprendi a dura lição me torturando com Michael Chabon e Brad Meltzer.
Sou mais os atemporais ou “amplamente modernos”, tipo Paul Auster ou aqueles contos de “Menina de Ouro”
Antes, vou colocando a minha listinha de compras de livros lançados décadas atrás.
Aproveito a opinião do Brother Sam pra discordar dessa opinião incrivelmente bem disseminada.
Não são brilhantes com as primeiras, mas toidas as temporadas dos Simpsons são muito boas e muito compráveis.
Fabio, não sabia que essa opinião era tão disseminada. Algumas vezes sinto que só eu estou marchando certo e a tropa inteira está errada, quando elogia a atual temporada. Quanto a Chabon e Meltzer, é tortura mesmo, mas os últimos Auster também foram (Desvarios no Brooklyn foi uma das piores coisas que li nos últimos tempos, Noite de Oráculo já mostrava que ele tava piorando). Abraço.
Os Simpsons parecem ser a perfeita síntese de tudo que há de mais contenporâneo no mundo… Homer é impagável, de tão estúpido ele chega a beirar a perfeição…
O humor dos Simpsons também é algo que falta de sobra para todo o mundo…
“Romancistas podem recorrer a essas novas formas de arte para encontrar novas estruturas e técnicas de contar histórias, como Joyce recorreu ao cinema. Mas quem está fazendo isso?”
Eu (modestamente) pelo menos venho tentando. Em forma, conteúdo e substância. Tento, pois tenho a preocupação de me responder algumas dessas perguntas: O que é a literatura impactada pela internet? O que é o leitor e o escritor nesse cenário?
Em um capítulo do romance Santos-Dumont Número 8 eu imagino (inclusive no formato) um “instant messenger chat” entre o leitor Abayomi e alguns escritores (o pensamento como um hipertexto)…
Outro capítulo, para ser lido, exige a decifração de um código.
O livro lido “seqüencialmente” apresenta uma trama, lido hipertextualmente, apresenta uma meta-trama (força a releitura, no sentido dado por Barthes? É possível… 🙂
Isso e mais algumas outras coisas, como por exemplo, a integração com outras mídias (orkut, youtube, etc…) que funcionam como “extras” do romance.
Aprecio essa discussão. Esse é um assunto que precisa ser mais debatido. Por enquanto apenas “tateamos”…
Irreverente certamente é, mas não é o mais ‘revolucionário’ ou ‘original’, mas sim algo como um longa metragem de desenhos animados misturados com caricaturas e tiras de jornais, realmente boas tiradas mas só ganha o lance aquele que tem o mesmo olhar malicioso, os que não tem ficam boiando ou com aquelas ‘risadinhas amarelas’ do tipo ‘sei, sei, entendi’…hahahaha…
Eu iria mais longe, sem medo de patrulha acadêmica: “Os Simpsons” estão para a cultura americana assim como “Dom Quixote” está para a espanhola.
E não torçam o nariz, puristas. “Dom Quixote” também é sátira, também é engraçado, também é violento, também é episódico, e muitas vezes parece um cartum tão ou mais tresloucado que “Os Simpsons”.
Através de forte viés satírico, Cervantes criticou o quanto pôde os romances de cavalaria assim como Os Simpsons fazem com a cultura pop americana da TV, da música, das celebridades. Assim como a criação de Matt Groening, Cervantes cutucou poderosos, questionou modas filosóficas, e tudo o que era moda em sua época.
E a quem diz que as últimas temporadas dos Simpsons não são tão boas quanto às primeiras, a mesma coisa vale para o grande romance de Cervantes: a segunda parte não é tão boa quanto a primeira, mas no todo, a obra toda é genial.
A única diferença é que “Dom Quixote” é a obra de uma homem só, um autor, um gênio. E “Os Simpsons” é um grande trabalho de equipe, cuja autoria de Matt Groening se resume a um boa administração de talentos alheios. Mas nada que desmereça a qualidade geral da obra.
Abraço
Edson
Concordo plenamente
com o Edson Costanza.
Gosto muito dos Simpsons e concordo plenamente comigo.
Sérgio, eu achei engraçado vc abordar este tema. Não só é o que eu penso, como o fiz no meu romance HierosGamos, que vem sendo rejeitado (até agora) justamente por este motivo: o “mercado” não se interessa pelo ambiente da internet. Meu romance é assim, modéstia
droga, o destino me cortou, continuando: meu romance é assim, modéstia à parte, mais idéias que um ano de Simpsons, que aliás, não assisto. Pelo menos fiquei feliz que a crítica começa a mudar de opinião, daqui a uns 10 anos quem sabe tb as editoras e, como resultado, o “mercado”. Ah, sim: pra quem quiser comprovar, está online: http://hierosgamos.here.de/
É a profecia do M.Macluhan!
É como eu sempre digo, só três coisas boas vieram dos EUA: Simpsons, Ramones e os filmes do Kubrick.
Exato, o MMcluhan fugiu para o Canadá!
Aquelas criaturas amarelas de quatro dedos com olhos medonhos sao protagonistas de uma comedia de costumes contemporanea. (A Area 51 existe e é de lá que vieram os célebres Simpsons) A família, ainda nuclear, onde apresenta situacoes que sao o dia-a-dia de muitos. Talvez a própria durabilidade de exibicao do seriado seja seu atestato de legimidade de ser uma comedia atual e que nao só diverte, mas também leva as pessoas a pensar sobre si, sobre seu mundo e quiçá o futuro que modamos e alemejamos. Ih! Yes my friend! Existe vida inteligente acima do trópico do Equador.
Bem, porque pra se valorizar algo precisa denegrir algo outro?
O desenho OS Simpsons é um barato, crítico, irônico e divertido. Os romances bon são bons, ponto.
Uma coisa é uma coisa e a outra coisa é outra coisa.
Agora, quanto à defesa da alinearidade e da mistura que se vê na internet, será que pra ser bom, válido, todo romance tem de necessariamente abordar esse universo?
Acho que não é forçosamente necessário…
Aliás, pelo que leio, romances ou contos que abordam esse mundo invariavelmente são rematadas porcarias…
Agora: “Romancistas podem recorrer a essas novas formas de arte para encontrar novas estruturas e técnicas de contar histórias, como Joyce recorreu ao cinema.”
Alguém me esclareça, por favor.
Quando Joyce recorreu ao cinema?
Quando, como e onde?
Não me consta que o velho cegueta James Augustine Aloysius Joyce tenha sido cineasta… ou eu entendi mal?
Joyce não foi cineasta, mas se meteu apaixonadamente com cinema: fascinado pela novidade em Trieste, percebeu que em Dublin não havia uma única sala de exibição. Então se juntou com alguns sócios e abriu uma, chamada Volta, que durou apenas de 1909 a 1910. No que diz respeito à obra, muitos críticos já viram Eisenstein no Ulisses, enquanto outros viram Dubliners no neo-realismo italiano – é possível que isso estivesse mais na cabeça dos críticos que dos criadores, mas não importa. O certo é que o modernismo foi assim, feito de olhos bem abertos para o que rolava em volta – depois é que tudo virou geléia. Um livro que conta detalhadamente a história de Joyce e o cinema foi escrito pelo crítico Thomas Burdkall há poucos anos. Chama-se “Joycean frames” e, que eu saiba, não foi lançado aqui.
Sérgio: Ainda bem que os olhos é que estavam abertos. Imagine se fossem os ouvidos… Escute só a voz de Joyce: http://aultimabiblioteca.blogspot.com/2007/02/podcasting.html
Sérgio,
Sei desse lance do Joyce abrindo sala para exibir filmes (ele pensava em ganhar uma graninha com isso).
Mas refiro-me ao lance de criação artística…
Não me consta que ele se meteu a escrever roteiro ou argumentos pra cinema. Ele escreveu os poemas, contos e romances (ou como os críticos queiram nomear os textos do irlandês) dele. Agora, relacionar esses textos com cinema é a velha forçação de barra que a criticalhada gosta de fazer, teorias ocas na maioria. E pior, a posteriori…
Me desculpe, mas no texto do Julian Gough está claro: “…como Joyce recorreu ao cinema.”
Abrir uma salinha para exibir filmes (e dar com os burros nágua, do ponto de vista empresarial) não tem nada a ver com criação literária.
Cezar, acredito estar claro no texto do sujeito que recorrer ao cinema “para encontrar novas estruturas e técnicas de contar histórias” significa apenas se apropriar de “truques” da arte alheia, tomar emprestado dela um conjunto de recursos para serem empregados na literatura – e não no próprio cinema. Pode-se dizer, por exemplo, que Proust recorreu à psicanálise, sem que ninguém entenda com isso que ele abriu um consultório, certo?
Tá, Sergio, se vc tá dizendo eu acredito.
Como não tenho referências de Joyce recorrendo às técnicas cinematográficas para engendrar seus textos (aliás, acho que ele estava anos-luz à frente do cinema, desculpe o trocadilho), mais uma vez confirmo que minha ignorância está se tornando, a cada dia, mais abissal.