“A comédia me parece ser tudo o que resta para um escritor trabalhar no mundo atual. Drama, romance, épico, tudo isso de alguma forma parece corresponder a outras épocas, a outras formas de ver o mundo.” A declaração do inglês Martin Amis, em entrevista que fiz com ele para o “Jornal do Brasil” em 2001, é categórica demais para não conter muito de exagero. Mesmo assim, nunca mais a tirei da cabeça. De vez em quando me divirto imaginando como se sairia, julgada por critério tão absoluto, a literatura brasileira contemporânea e sua irmã, a crítica, que parecem ter se esquecido por completo da lição de Machado e – num país basicamente absurdo, o que é mais absurdo ainda – tentam empurrar o humor e a ironia para fora de seus domínios, como se fossem recursos estéticos necessariamente menores.
Amis, claro, é um provocador profissional. Parecia usar a mesma régua do humor, além de um certo ressentimento pelo Nobel alheio, quando declarou recentemente que o “depressivo” J.M. Coetzee “não tem talento” – o que é ridículo. Mas Amis é também um escritor inquieto e ambicioso que a meu ver, mesmo quando quebra a cara, dá um jeito de quebrá-la de forma interessante (como em “Casa de encontros”, lançado aqui em 2007 pela Companhia das Letras). Em outro momento daquela entrevista de 2001, num desdobramento do tema da comédia, explicou-me que gosta de “escrever sobre discrepâncias marcadas… Em vez de um conflito sutil na cabeça de um personagem, prefiro criar logo dois personagens opostos, pô-los em confronto direto e explorar as conseqüências.” Ou seja, escrever para fora e não para dentro. O que mais uma vez me deixou pensando nos problemas aqui de casa e em nossa tendência, que me parece hegemônica, ao intimismo, ao “conflito sutil na cabeça de um personagem”. Curiosamente, inclinação que parece até conflitante com uma certa vocação geral da cultura brasileira.
Todas essas memórias vêm a propósito de um artigo nada literário que li hoje na “New Scientist”, sobre as pesquisas de diversos neurocientistas em torno do modo como o cérebro humano processa o humor. A certa altura, especula-se lá que a depressão pode ser uma das condições que bloqueiam a resposta de prazer deflagrada no sistema límbico por aquilo que achamos engraçado. Me ocorreu então a terrível imagem de uma literatura que, intimidada pela sombra de seus gigantes mortos, seus Machados, seus Gracilianos, seus Rosas, se esgueira sorumbática pelos cantos, olhos no chão, fazendo o possível para não chamar a atenção do leitor.
Mas talvez isso seja só uma piada.
30 Comentários
Será que sou só eu que enxergo humor no Machado de Assis?
machado é engraçadissimo. 🙂
Danilo, acho que é bem o contrário: existirá alguém que não enxerga humor em Machado?
Tweets that mention Está rindo de quê, ô? | Todoprosa -- Topsy.com
Meus textos costumam ter humor, e eu tentava fugir disso. Quando estava na escola de cinema, entreguei um roteiro e o professor disse “achei engraçadíssimo”. Fiquei deprimido, pq não era para ser engraçado. Ou era? Lá pelas tantas ele falou “pare de fugir do que vc sabe fazer”. O mesmo aconteceu com meu futuro livro, o Néon Azul. Entreguei para a beta-reader e ela mandou “adoro esse seu humorzinho”. E eu pensando, caceta, era para o livro ser triste, é um livro sobre solidão. Passei a entender melhor meus processos de transferência para o texto e os personagens lendo Trem Noturno, do Amis, que é um livro mais depressivo, curiosamente. Também aprendi a não me levar a sério demais (ou não me levar a sério ponto).
Abss!
Certeiro mais uma vez.
A meu ver, um dos grandes legados de geniais obras satíricas como ‘Lisístrata’, ‘Muito Barulho Por Nada’, ‘Dom Quixote’, ‘Huck Finn’, ‘Declínio & Queda’ e tantas outras é o seguinte: Ô, sisudo de plantão, não leve tudo tão a sério, meu filho.
Dica: texto com tema parecido no blog do escritor Javier Marías: http://javiermarias.es/wordpressblog/index.php/2009/08/15/el-genero-abandonado/
Sílvio, obrigado pelo link perfeito do Javier Marías. Está tudo ali, e não tem graça nenhuma imaginar que, se ele estiver certo, essa tendência à pomposidade é universal. Um abraço.
Duas coisas que me vieram à cabeça: (i) o humor do pai do Martin Amis (Kingsley Amis), no Lucky Jim, que li recentemente e que é uma delícia; (ii) a evidenciação dessa estratégia de colocar os personagens opostos em confronto, num livro chamado Success… a contraposição entre os dois irmãos postiços, seus mundos e modos de pensar, é tão gritante que me veio à cabeça na hora…
Um terceiro negócio é que o seu começo, falando do nosso nariz levantado pro humor, remete a um outro post, de algumas semanas atrás, em que eram discutidas nossas pretensões à grande arte e nosso permanente flerte com o hermetismo… o desprezo do brasileiro pelo humor – e também por qualquer coisa que seja declaradamente consumível, ainda mais se for com algum prazer – gera cada chatice que eu vou te dizer!
Tem razão… literatura intimidade… tão intimidada que eu pergunto: quais nomes atuais, escritores vivos da literatura brasileira ainda serão lidos daqui a cem anos?
À Fernanda: tenho certeza de que João Ubaldo será lido para sempre (e ainda muito mais com o passar do tempo). E espero isso, inclusive por seus momentos refinados de comediante.
A todos: No romance Auto-de-fé, pela boca de seu engraçadíssimo pois kafkiano Peter Kein, Elias Canetti decreta que todo, todo romancista é um comediante, o que, também tenho certeza, seria mal interpretado pela maioria dos leitores brasileiros de ficção. Aliás, por outra sua razão, não atinente ao tópico, no mesmo parágrafo Kein julga que a escrita de romances deveria ser vetada pelo Estado. Olhem, como disse Salman Rushdie com respeito a Auto-de-fé, no século XX: “The remoreseless quality of the comedy builds one of the most terrifying literary worlds of the century.”
Deixo grifos meus em “comedy” e em “terrifying”.
Um abraço.
Toda literatura brasileira, do meu ponto de vista, tem, sempre uma pitada de humor. Seja ela de um dos carrancudos do século XIX, seja de um “light” ou “politizado” do século XX ou de “transeculares” de hoje, seja qual for o tema, lá está ela… a deliciosa pitadinha de humor. Que invejem os franceses e os ingleses pois, mesmo que brindem aos lançamentos com champagne “borbulhada” ao gás hilariante o “peso” da história e dos personagens não abrirão o menor sorriso.
Invejem? O que? Quase toda a literatura brasileira contemporânea, justamente para ver se arruma foros de “literatura séria” despreza o humor! Como você pode dizer que não se abre sorriso com a literatura inglesa? Você já leu Kingsley Amis, Martin Amis, Evellyn Waugh? Ou, mais recentemente, David Lodge? Algum escritor de cunho humorístico teria, no Brasil, o respeito que o Lodge tem na Inglaterra? Não conheço muito, mas os que conheço fazem da ironia seu maior exercício… já aqui, cada vez mais, ou o cara já é grande quando decide ser engraçado, ou ele nunca será levado a sério…
E viva Lima Barreto, Manuel Antonio de Almeida, Ariano Suassuna, Campos de Carvalho, Millor Fernandes, LF Veríssimo, Sérgio Porto, Marcio Souza, JR Torero e outros escritores que serão lembrados pelo humor, em seus melhores momentos!
falta leveza, falta despretensão, falta voar um pouco, deixar de ter vergonha, deixar para trás esta pecha de povo colonizado, parar de reclamar do que nos tiraram e aproveitar o que sempre tivemos. hora de rir, minha gente!
Sabe que uma vez eu li um artigo na Bravo – sem a revista não consigo lembrar o nome do autor – em que criticavam Luis Fernando Verissimo por renegar sua erudição em nome do humor, como se desperdiçasse seu próprio talento. Achei um equivoco do começo ao fim.
No fundo, o que vale é que a ” pessoa é para o que nasce”…
também não adianta o sujeito ter uma vocação para textos mais sisudos e tentar enveredar pelo caminho do humor se ali não se sente a vontade.
O que não pode, em hipótese alguma, é haver essa confusão que caracteriza o sisudo de bom, erudito, e o be-humorado de leviano, frívolo.
*** A propósito da Bravo, não comentei o post sobre o ” Gabo” antes, porque queria ler a revista antes. Muito boa a parte que lhe toca na história, Sergio. Deu vontade de ler a biografia, e a partir de sua resenha, leirei com o senso crítico um pouco mais afiado, sem entretanto entrar nela com opinões pre-fabricadas. Acho que é pra isso que servem as resenhas, não ?
A primeira parte, entretanto, me pareceu um pouco pautada pela tendência geral de caracterizar como um demente-infantil todo e qualquer sujeito que de algum modo se relacione com o Marxismo. Algumas frases poderiam, inclusive, ser retiradas por inteiro para figurar nas reportagens do semanário que a mesma editora publica…
Voltando ao humor, pra encerrar, viva Millôr Fernandes!
Para continuar no terreno das simplificações com talvez algo de verdade, acho que seria pertinente comparar o PIB per capita e os índices de escolaridade e desigualdade de cada um dos dois países (Brasil e Inglaterra) e a partir desses números refletir sobre como se sente alguém que se dedica à escrita de ficção num e noutro lugar. Se no Brasil a atividade parece mais absurda, esse absurdo no entanto nada tem de leve – pelo contrário.
Pedro: não acredito que a leveza acompanhe necessariamente o humor, como você e o Gilvas parecem sugerir. O humor de Machado, para ficar num nome já citado tantas vezes aqui, não tem nada de leve. Acho que não compreender a capacidade que tem a comédia de provocar reflexão e até mal-estar é um dos primeiros sintomas do preconceito que a cerca: Ah, isso é só brincadeira, não vou perder meu tempo. Exterminador de pompa e sisudez, acho que o humor sempre é mesmo; de peso e gravidade, depende muito.
Bem, como não é “A Palavra é…” fico só na escuta, isto é na olhada…
Vírgula após isto é, por favor. Obrigada.
Sergio,
Houve alguma confusão com relação ao meu comentário. Na verdade, o meu pára exatamente no ” Viva Millôr Fernandes”…
rs
Logo abaixo, vem outro comentário, que mais parece um pedaço de algum outro, e está assinado como ” Pedro David.” Entretanto, não fui em quem escrevi. rs
Não que isso vá provocar grandes problemas metafísicos, mas… Até porque, concordo com você: leveza e humor não estão necessariamente relacionados.
ABS
Agora faz mais sentido, Pedro. Achei mesmo que o segundo comentário, com aquele papo torto de PIB (como se houvesse relação entre humor e afluência, só os ingleses tivessem humor e todo mundo lá fosse Martin Amis), não estava à sua altura.
Sérgio,
Interessante sua hipótese, mas… me parece que a sombra dos gigantes mortos da literatura inglesa é um tanto mais dilatada que a dos nossos gigantes: Shakespeare, Chaucer, Milton, Defoe, Dickens, Hardy, para lembrar alguns.
Também pensei nisso, Rafael. Mas Cuidado!!!
Senão o Esquadrão Afonso Celso e a Patrulha Policarpo Quaresma vão te enquadrar como “colonizado”!!! 😀
Nail,
Que venham! Essas pulgas, eu as esmago com minhas unhas just for fun (nada se compara ao indizível prazer de usar uma expressão colonizada).
Que fique claro: a literatura em língua inglesa é infinitamente superior à literatura escrita em língua portuguesa; a literatura brasileira, salvo as honrosas e excepcionalíssimas exceções, é tísica, tênue, mínima, raquítica.
Um único soneto de Shakespeare eclipsa quase que toda a poesia brasileira.
Alguém vai encarar?
Ah, sim, claro. Talvez seja mesmo uma piada!
Talvez, Rafael. Mas uma coisa é certa: nem todo mundo se retrai diante da sombra dos gigantes, por maior que ela seja.
Não tenho dúvidas, Sérgio. Os grandes escritores espelham-se nos grandes exemplos do passado; já os medíocres deixam-se entorpecer pela ilusão relativista.
Valete
Ops, terceiro comentário na seqüência? É a Rosângela fazendo escola!
Alguém já falou que a obra de Shakespeare é “um oceano, que se atravessa com água pelas canelas”. Se não me engano, um inglês…
Grande dramaturgo, certamente. Sonetista? Há contemporâneos à altura, em vários idiomas.
Dostoiévski, Adorno e outros autores cômicos « Blog da Companhia das Letras