Esses dias, enquanto tento pôr um ponto final na narrativa mais longa que já escrevi, tem me vindo à cabeça – ou o pouco que resta dela a essa altura do processo de escrever um romance – a questão da extensão, da duração supostamente ideal dos textos literários. Aquilo que Edgar Allan Poe quantificou com segurança admirável no caso da poesia em torno de cem versos. E fez “O corvo” com 108.
Tudo bem, mas – e a prosa? Cem linhas? No mesmo ensaio, o brilhante “A filosofia da composição”, ao qual nunca me canso de voltar, Poe admite que em certos casos (ele cita “Robinson Crusoé”) a prosa pode tirar proveito da longa extensão. Mas acrescenta que isso seria vedado à poesia, que a seu ver sempre perde ao abrir mão da “totalidade ou unidade do efeito” advinda da leitura que se faz de uma só tacada, sem interrupção.
Eis enfim a medida de Poe: a capacidade de leitura do leitor. Para o escritor americano, essa capacidade pode ser esticada, pois textos excessivamente curtos reverberam pouco, mas jamais rompida, uma vez que textos longos demais precisam ser lidos em várias etapas e isso atenua seu efeito geral.
Aí estaria uma espécie de lei universal da extensão, que acho curiosa, embora suspeite que Poe deixa entrever nela sua incompatibilidade com o romance, gênero que nunca praticou (passou perto em “Narrativa de Arthur Gordon Pynn”). Ao interromper e retomar a leitura seguidas vezes, é possível que o leitor de uma boa narrativa longa, em vez de se afastar dela, execute o movimento contrário – o de mergulhar cada vez mais naquele universo, à medida que abre em sua vida o tempo necessário à lenta e inconsciente assimilação de seus elementos. É só uma hipótese.
Seja como for, deve-se levar em conta que a tal capacidade de leitura do leitor não é a mesma desde que Poe escreveu seu ensaio, em 1846. Longe disso. Mas terá encolhido tanto quanto dizem por aí?
Se os leitores que fazem dos best-sellers o que eles são ainda valorizam um bom tijolo, parece evidente que o tamanho reduzido tem passado por documento entre tipos mais, digamos, literários. Depois que a internet deu de aparecer em absolutamente todas as conversas sobre literatura, tornou-se uma espécie de premissa cristalina a idéia de que, para ser sintonizado com seu tempo, um escritor de hoje deve produzir histórias curtas ou, de preferência, curtíssimas. Daquelas que, segundo a filosofia de Poe, não chegam a ter tempo de reverberar e que quando são extremamente bem executadas, como certos microcontos de Dalton Trevisan, conseguem arrancar do leitor um sorriso – seguido de um discreto “e daí?”.
Bom, antes que me tomem por maluco, convém explicar que essas considerações nada têm a ver com a busca de uma verdade única sobre a extensão dos textos literários. É claro que tal coisa não existe, cada história dita o seu tamanho. No entanto, um pensamento tem me assediado: e se, justamente porque nosso tempo é tão veloz, tão fragmentado, as narrativas longas se firmarem como sua forma literária de excelência? Não por se conformarem ao Zeitgeist, mas por irem bravamente no sentido oposto – o da resistência à tirania da velocidade?
Depois daquele primeiro parágrafo, antecipo a acusação de advogar em causa própria, que, no entanto, não tem fundamento. Com cerca de duzentas páginas, meu novo romance está bem distante de ser longo. É só o mais longo que já escrevi. Quando falo de narrativas caudalosas, falo de cartapácios de quinhentas páginas, do tipo que a literatura brasileira raramente produz. E se forem eles os santuários do século 21?
17 Comentários
Ano passado saiu um romance de mais de 600 páginas de um grande escritor capixaba, Reinaldo Santos Neves, chamado justamente A LONGA HISTÓRIA. E ainda por cima é uma história que se passa na Idade Média. Um troço raro, sem dúvida, e maravilhosamente bem escrito, se é que o termo é esse. E tô lendo agora um desses “cartapácios de quinhentas páginas”, A VERSÃO DE BARNEY, do escritor (judeu) canadense Mordecai Richler. É engraçadíssimo, e eu quase abandonei a leitura lá pela página 100, mas garanto que valeu a pena perseverar. Por falar em “resistência à tirania da velocidade”… Abraços, e já tô esperando o teu “romanção” de 200 páginas!
Sempre quis escrever um texto em que aparecesse a palavra Zeitgeist…
É uma questão de estilo. Condensar e ter conteúdo bombástico, deixando no leitor aquela sensação de ter degustado um tinto rascante, seco e quente pode ser mais difícil do que escrever um tijolaço. Ou o Tijolaço, mesmo em suas doses homeopáticas, depois de degustado, deixar a mesmíssima sensação.
O que importa é ser Literatura, com L maiúsculo e qualidade intrínseca. A extensão fica a cargo da escolha do autorno ato da escrita e do leitor, no seu livre arbítrio de tirar ou não determinado livro da estante e sorvê-lo com os olhos até inebriar o coração.
Tem espaço para todos. Mas eu, particularmente, acho que quem escrever miudinho vai ter maior potencial de conquistar o leitor desta geração que simultaneamente ao lápis foi alfabetizado com o teclado do computador do que o escritor dos calhamaços. Pq esta geração aprende a ler assim, picotado. E nem todos terão disponibilidade e vontade de se reinventar, e de reinventar sua relação com a escrita. e só.
A telenovela original tinha 2, 3 anos de duração. O espectador se propunha a isto, se interessava em participar deste jogo. Hj em dia 8 meses já é tempo d+. Mudou o espectador, mudou o conceito de tempo, mudou a produção.
Creio que a literatura tb necessitará se adaptar.
Sérgio,
acredito que o fato do romance longo estar tão presente nessa época de velocidade é mera coincidência. Porque o conto explode no século XIX, quando acontecem revoluções que trazem justamente a velocidade. Naquela época, a condensação do conto representava a velocidade de uma nova era. Agora, os romances longos são sua oposição.
Não sei se você me entende, mas não faz muito sentido. Acho que é coincidência mesmo. Daqui a pouco o conto volta à toda, pra dar lugar ao romance, pra dar lugar ao conto…
Quanto à extensão ideal, acho que é a menor possível. Mesmo que isso seja o calhamaço que é Dom Quixote ou Moby Dick.
Tenho uma dificuldade particular com narrativas curtas – a mim, romances sempre agradaram mais do que contos, por exemplo. É evidente que não se trata de medir qualidade por extensão, mas da narrativa fluir no ritmo natural, e não ser manipulada para ficar menor por medo de assustar, de sei lá o quê. Eu nunca tinha parado para pensar a sério sobre isso, mas fez todo sentido essa sua hipótese de que “interromper e retomar a leitura seguidas vezes … execute o movimento contrário – o de mergulhar cada vez mais naquele universo”. Ao conviver com os livros, eu crio laços afetivos que se tornam mais profundos à medida em que a narrativa toma mais do meu tempo, à medida em que eu me envolvo mais com o que está sendo dito. Diferente, e bem mais prazeroso, do que os textos curtos tipo “one night stand”.
Sempre que estou em dúvida entre comprar o livro X ou o livro Y, ambos alegadamente “bons”, meu critério de desempate é sempre escolher o de maior número de páginas.
Por dois motivos: livros maiores costumam ser proporcionalmente mais baratos (um livro de 400 pp via de regra não custa o dobro do que um de 200 pp) e o outro já foi apontado pelo Sérgio. Uma narrativa maior proporciona uma maior imersão, absorvendo o leitor para a realidade arquitetada pelo escritor.
Mas confesso já ter abandonado D. Quixote no primeiro terço do livro, ao constatar que daria pra ler uns 10 livros no tempo em que eu gastaria pra terminá-lo… fazer o quê… não podemos ser tão coerentes 🙂
Sérgio, o que eu acho um grande barato é essa propensão de certos autores a certos formatos. É difícil imaginar Borges escrevendo um romanção. Dalton Trevisan tentou apenas uma vez – e A Polaquinha nada mais é do que um conto seu que passou muito do ponto. Por outro lado, há quem só funcione em narrativas longas – Proust só foi se encontrar no ciclo do Tempo Perdido, depois de brincar com paródias curtas em Os Prazeres e os Dias. Seria interessante conseguir “explicar” essa inclinação a uma coisa ou outra.
Por essas e outras é preciso venerar quem atingiu o ápice nas duas formas: Machado, Joyce, Onetti, Kafka, James etc.
Eu divido os textos que leio em bons, ótimos, ruins ou pessimos. Independente do tamanho deles. Claro que, se tenho mais tempo, longos podem ser melhor explorados. Mas prefiro essa opção: texto bom, sigo em frente, curto ou longo. Ruim, detonado. Curto ou longo.
É verdade, Jonas. A inclinação por determinada extensão – ou mais raramente por mais de uma – parece fazer parte da personalidade do autor. No fim é uma limitação, uma “deficiência” no sentido usado pelo Quintana quando diz que todo estilo é produto de uma deficiência, porque cada um só consegue escrever como pode.
André: sim, claro que a qualidade está acima de tudo isso.
Sérgio, esse comentário do meu conterrâneo Mario Quintana (é dele, não?) matou a pau, e serve maravilhosamente bem pra explicar um cara como o Miles Davis, por exemplo, melhor do que qualquer outra definição que eu já tenha lido! Abraços.
Sim, Karam, é do Mario Quintana. Uma bela frase.
O que dá solidez ao muro não é o número de tijolos, mas a consistência da argamassa que os une. AInda leremos Moby Dick e Guerra e Paz, e mesmo Em Busca do Tempo Perdido. São sólidas, coesas, ainda que caudalosas. O produto final da escrita, em suma, é sólido.
Mas penso que há – para se obter o “efeito” de impressionar e cativar o leitor, o que tanto interessa ao Poe (e a todo escritor que se preze) – basicamente dois procedimentos, no caso do romance.
Ou se fazem capítulos orgânicos, dotados de certa autonomia e completude em relação ao conjunto (vide “O Grande Inquisidor”, do Dostoiévski, ou o “Diante da Lei” do Kakfa), ou se fazem, em sentido oposto, capítulos cujo desdobramento se dará no capítulo seguinte, de modo a prender até o fim a atenção do leitor (e aqui vale a remissão aos folhetins do século XIX e mesmo aos roteiros das novelas atuais, seus tributários).
Importante é pois a coesão, não o tamanho. Claro, sempre cada tipo de obra terá o seu leitor adequado, não sendo razoável esperar que todos os leitores serão do tipo “curioso” (o que quer consumir logo a próxima página, e portanto está mais para o folhetim) ou do tipo “reflexivo” (que fecha o livro após cada capítulo reflete sobre o material lido, sem ansiedade para consumir o que está por vir, e portanto está mais para o capítulo-conto).
De todo modo, num e noutro “tipo” de redação romanesca, penso que haverá leitores qualquer que seja o tamanho do livro. Se não houver interesse ou encadeamento nos capítulos, curto ou grosso o livro não interessará – ainda que seja bem escrito.
Independente do conteudo do texto, tao bem colocado, aprecio as duas primeiras linhas com uma intensidade tao boa quanto inexplicavel…
Beijos do hemisferio sul,
Ato-falho: do hemisferio Norte…
Em português há também o recente e vastíssimo Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, que chegou até a final da Copa da Literatura.
A Márcia Denser numa entrevista recente ao Rascunho, acho, foi quem defendeu uma extensão padrão para o conto. De acordo com ela o conto bom tem no máximo 120 linhas. Umas quatro páginas em word, portanto.
Mas confesso que acho todo tipo de paradigma como esse muito relativo. Acho que funciona mais como um desafio do leitor a si mesmo do que propriamente como verdade. Como se chamará o novo livro, Sérgio?
Hefestus: ainda não tenho um nome definitivo. Avisarei aqui à medida que houver novidades. Um abraço.