Muitas das alegações de Flaubert devem ser entendidas com uma dose de ceticismo. A certa altura, por exemplo, ele expressou o desejo de escrever “un livre sur rien”, um livro sobre “nada” – livro ideal que ficaria de pé por meio da pura força do estilo e da estrutura, sem qualquer preocupação com o tema. Essa metáfora da criação desapegada de um artífice parecido com um deus foi muito citada por críticos ansiosos em arrolar Flaubert entre os primeiros pós-modernistas. Mas permanece o fato de que “Madame Bovary”, firmemente plantado na realidade cotidiana de sua Normandia nativa, continha uma carga precisa de matéria temática suficiente para fazer seus conterrâneos normandos urrarem de fúria.
A resenha (em inglês, acesso livre) que Victor Brombert assina na última edição do “Times Literary Supplement” sobre o recém-lançado tijolo Flaubert – a biography, de Frederick Brown, faz foco nas meias trapaças que Gustave Flaubert (1821-1880) semeou sobre sua própria pessoa: o famoso eremita que desprezava o convívio social e se devotava inteiramente à arte não era tão misantropo assim, teve uma vida interessantíssima e exultou quando se tornou amigo e conviva habitual da Princesa Mathilde Bonaparte. O que, pensando bem, ameniza a traição representada por um livro como o de Brown, que já biografou Jean Cocteau e Émile Zola: Flaubert era o primeiro a dizer que a vida de um escritor não tem a menor importância, mas não dá para acreditar em tudo o que ele diz.
3 Comentários
Dizem as más línguas (ou serão as boas?) que Flaubert era pai de Guy de Maupassant – que, aliás, aprendeu com ele a escrever contos. Assim como é uma delícia NÃO saber se Capitu traiu mesmo, prefiro não saber se Flaubert era mesmo o pai. A mera possibilidade já me delicia…
“Muitos querem saber em quem F…se inspirou para compor Ema Bovary. Diante da insistência de todos, declara: -Madame Bovary sou eu”.
Fim de uma biografia:
” O escritor volta a padecer dos ataques epiléticos da juventude.(…) Flaubert só tem a companhia da sobrinha, e, em visitas breves, a do romancista Émile Zola, do jovem Guy de Maupassant e do escritor russo Ivan Turgueniev.(…) A vida, que para ele nunca tivera atrativo, é agora um tédio infinito. A única distração ainda é escrever. Aos 55 anos, Flaubert elabora um conto que é uma obra-prima: Um Coração Simples. (…) Padece de terríveis sofrimentos físicos. A mão não tem mais firmeza. A palavra certa não lhe ocorre mais. Finalmente, um ataque de apoplexia dá-lhe o golpe mortal. O tédio dissolve-se, a vida pára.Num dia de primavera de 1880, o romântico mestre do Realismo francês resolve suas inquietações. Mas não lhe havia sobrado tempo necessário para cumprir a promessa que fizera a um amigo: – Um dia, antes de morrer, resumirei minha vida, tentarei contar-me a mim mesmo.”
Coleção Obras-Primas (Nova Cultural)
Muito interessante também é o retrato que podemos formar da pessoa Flaubert a partir da leitura dos Diários dos irmãos Goncourt, sobretudo os trechos em que são narrados os jantares quinzenais que organizavam no Magny, restaurante de Paris, com Renan, Gauthier etc. Claro, o tom é de pura inveja e maledicência, mas tudo é escrito no calor da hora, e o leitor percebe quem é quem.
Aliás, esses “jantares” dariam um livrinho bem legal. Abraços, André