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Flip, ano 10: uma retrospectiva pessoal

02/07/2012

Não somos exatamente da mesma geração: a Festa Literária Internacional de Paraty está completando dez anos e o Todoprosa acaba de fazer seis. Antes de criar o blog, porém, participei ativamente da Flip 2004 como mediador de duas mesas – a dos contistas brasileiros Sérgio Sant’Anna e Luiz Vilela e a dos romancistas anglófonos Jeffrey Eugenides, americano, e Jonathan Coe, inglês. Feitas as contas, só estive ausente em duas edições do principal evento literário brasileiro, ambas na pré-história do blog, em 2003 e 2005. Mesmo em 2009, quando peguei leve na cobertura jornalística por estar em Paraty com outras prioridades – falar de meu romance “Elza, a garota” na Tenda dos Autores como autor convidado era a primeira delas –, a Flip rendeu posts no Todoprosa. Suas histórias se confundem com regularidade suficiente para que seja possível montar uma retrospectiva desses dez anos de evento – assumidamente pessoal, ou seja, parcial no melhor dos sentidos – só com o que foi publicado aqui.

No começo era o mito

O fato de não ter estado na primeira Flip não me impediu de captar com precisão sobrenatural o que aconteceu por lá em 2003 neste post de 2010. Muito pelo contrário, acredito eu. Quando se trata de acessar o mito, conhecer a história só atrapalha.

Se você está indo à Flip pela primeira vez, talvez não saiba que quando ela nasceu, em 2003, a graça era sentar no banco da praça ao lado do Julian Barnes e puxar um papo de papagaio. Eu não estava lá, o que até hoje lamento de modo amargo. Contam que a caipirinha de Maria Izabel jorrava em fontes, as pousadas estavam repletas de vagas e as plateias contavam-se em dezenas, todo mundo confortavelmente abrigado na intimidade de um auditório de província. Era grande a lista do que ainda não existia: megatendas, setecentos programas paralelos, restaurantes lotados, multidões serpenteando pelas vielas noite adentro atrás de uma mítica Festa Perfeita, gente à beça que nunca leu nem Paulo Coelho em busca de alguma forma de diversão. Parati era pacata como sempre tinha sido, aquelas pedras inacreditáveis tentando torcer seu tornozelo a cada dois passos, mas de repente você podia topar, sei lá, com um coroa americano tentando vender uma bola de beisebol usada e você olhar e o cara ser o Don DeLillo, mas ele estava pedindo alto demais pela bola de beisebol e você seguia em frente – gringo metido a esperto. Naquela primeira Flip, tão pré-historicamente romântica que até o site oficial do evento a trata como capítulo à parte, Eric Hobsbawn foi visto correndo atrás de borboletas utópicas, bois passavam voando e a água benta das igrejas era puro parati. De tanto ouvir os relatos de quem esteve lá – pessoas saudosas que talvez exagerem um pouco – eu acredito que era exatamente assim. O que não impede cada vez mais gente de sustentar que a Flip 2003 nunca aconteceu, é apenas o delírio coletivo de um grupo de escritores de São Paulo, provavelmente induzido pelo consumo excessivo de álcool e barbitúricos.

Sérgio Sant’Anna, o zapeador

Compromissos familiares me obrigaram a abreviar minha primeira Flip, em 2004, voltando de Paraty no sábado de manhã. Azar o meu: perdi Ian McEwan (que está de volta este ano), Martin Amis, Paul Auster, Margaret Atwood e a pelada organizada pelo Chico Buarque. Depois escrevi um artigo para a revista eletrônica NoMínimo, da qual era editor executivo, chamado “Zap não pula por boniteza” – que infelizmente não está mais online. Segue um trecho:

“Hoje eu raramente leio um livro inteiro. Eu zapeio.” A frase foi suficientemente chocante para, mal terminada a II Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), sobrepor-se a todas as outras memórias e impressões que guardo de lá. Memórias e impressões que são muitas e fortes, mas mesmo assim aquela rendição ao modo zapping de ler, admitida com tranqüilidade e talvez até com certo orgulho, sobressai. Por quê? O que ainda pode haver de tão impressionante num fenômeno que todos sabemos que marca o nosso tempo – o do encontro de atenções cada vez mais dispersas com fluxos de informação cada vez mais acelerados?

O que a frase tem de impressionante é o seu autor. No caso, um autor propriamente dito, Sérgio Sant’Anna, 62 anos, escritor com maior número de histórias – três – na antologia de Italo Moriconi, “Os cem melhores contos brasileiros do século”.

Hitchens, o matador

Em 2006, pela primeira vez, a imersão do Todoprosa na Flip foi total. O que mais me ficou na memória foi uma conversa com Christopher Hitchens, que morreu em dezembro último, nós dois sentados na calçada na Praça da Matriz, sobre os planos de uma série de atentados terroristas em Londres que a polícia inglesa tinha acabado de descobrir. O que ele disse então, transtornado, foi registrado assim:

Quando você vem a uma microcivilização como esta de Parati, dedicada à artes, ao humanismo, ao internacionalismo, ao amor à literatura e à poesia, é um tanto obsceno receber uma ligação de Londres lhe pedindo para largar tudo e escrever sobre essa confusão sub-humana, esse plano de matar civis aleatoriamente em várias cidades. Mas não posso reclamar, não é como se eu não soubesse. Não importa onde você esteja, Parati ou Basra ou Amsterdã, isso é permanente. (…) Temos que aprimorar nossa capacidade de matá-los.

Coetzee, o polêmico

Imprevistos graves acabaram por comprometer o que deveria ser mais uma cobertura integral, mas consegui ver o principal de 2007: J.M. Coetzee lendo com engravatada formalidade trechos de “Diário de um ano ruim”. Uma noite espetacular, embora muita gente tenha saído revoltada da Tenda dos Autores. Prova de que André Maurois estava certo quando disse que “na literatura, como no amor, nós nos espantamos com as escolhas que os outros fazem”.Texto completo aqui.

Nessa minha passagem abreviada por Parati, me despedi das mesas no sábado à noite e em grande estilo: vendo e ouvindo o sul-africano/australiano J.M. Coetzee – que, aprendi lá, pronuncia-se Coutsía, vê se pode – ler longos trechos de seu próximo livro, ‘Diary of a bad year’. (…) Sim, houve quem saísse irritado com o formato da apresentação, inédito na história da Flip: sozinho no palco, em pé diante de uma tribuna de madeira escura e vestido como um agente funerário, Coetzee limitou-se a falar durante um ou dois minutos do livro, nada além do suficiente para contextualizar aquilo que leria em seguida – em sua maior parte, trechos diferentes e melhores do que os antecipados pela “NYRB”. Terminada a leitura, virou as costas e deixou o palco. Nenhuma pergunta, nenhuma resposta. Nenhum sorriso.

Stoppard salva o ano

A Flip 2008 costuma ser considerada a mais fraca de todas. Talvez tenha sido mesmo. No balanço que fiz na época, disse – talvez com boa vontade um pouco excessiva – que ela teve “altos, baixos e, sobretudo, médios”. Mas a palestra do dramaturgo e roteirista inglês Tom Stoppard foi uma espécie de aula magna tão surpreendente quanto provocante:

Além de “O fugitivo”, ele (Stoppard) a baseou em outros filmes americanos, como “Indiana Jones” e “O terceiro homem”, o que para mim foi um susto: esperava mais teatro, mais referências eruditas. Em vez disso, talvez estimulado pelo fato de ser um dramaturgo exótico para o público brasileiro, que o conhece como o roteirista de “Shakespeare apaixonado” e “A casa da Rússia”, declarou com todas as letras coisas como: “Prefiro assistir a um grande faroeste do que a um filme de arte medíocre”.

De alguma forma, é algo que a Flip precisava ouvir. Com sotaque britânico, talvez o pessoal preste atenção.

A hora do Lobo

Em 2009, depois de participar na Tenda dos Autores da mesa “Verdades inventadas” (veja trecho aqui, em vídeo), que dividi com Arnaldo Bloch e Tatiana Salem Levy, tive a felicidade de ver Lobo Antunes jantar a Flip.

Depois do discurso com certo ranço de ensaiado de Gay Talese, o português António Lobo Antunes pôs a Flip 2009 no bolso ontem à noite. Com o humor dos grandes mal-humorados e aquela marra que é só dele mesmo, lançou ao auditório abarrotado da Tenda dos Autores uma quantidade acachapante de boas tiradas, anedotas e epigramas.

Reed e Crumb, ausentes

A edição 2010, anotei na época, foi marcada por especulações de que o fôlego do evento estaria se esgotando. O astro do rock Lou Reed e o astro dos quadrinhos Robert Crumb, cada um a seu modo, contribuíram para isso.

O mundo literário é vasto, mas os astros que aceitam convites do gênero – universo que não inclui Philip Roth e um monte de gente – estão acabando. Uma prova disso é a volta de Salman Rushdie, que ainda assim foi um dos pontos altos de 2010. Se tiver que vir de novo em 2013, porém…

Por outro lado, a ideia de afrouxar os critérios propriamente literários para abarcar astros de outros céus, testada este ano com Lou Reed e Robert Crumb, deu no que deu. Reed nem veio e Crumb, arrependido de não ter feito o mesmo, foi o entediado personagem principal de uma das mesas mais tolas em oito anos de Flip. É irrelevante decidir se a culpa é dele ou de quem desavisadamente convidou um sujeito alérgico a aparições públicas. O fato é que a noite de sábado, filé mignon do evento, micou.

O ‘nazista’ e o queridinho

Ano passado, o cineasta francês Claude Lanzmann e o escritor português Valter Hugo Mãe foram os personagens mais destacados da festa, conforme registrei neste balanço. Por motivos opostos.

Se o curador da Flip 2011, o crítico literário Manuel da Costa Pinto, tivesse optado por outra palavra negativa para qualificar a participação constrangedora do cineasta francês Claude Lanzmann, responsável pelo pior momento da festa, teria prestado um bom serviço à história do evento. (…) Ao optar por chamar de “nazista” um judeu que foi combatente da Resistência Francesa e realizou o referencial documentário “Shoah”, sobre o Holocausto, Costa Pinto viu-se obrigado a pedir desculpas e levou para uma penosa prorrogação o constrangimento inaugurado pela truculência com que Lanzmann humilhou repetidamente seu entrevistador, Márcio Seligmann-Silva, e desrespeitou o público na mesa de sexta-feira chamada “A ética da representação”.

Se nazista foi a palavra errada, o escritor português de origem angolana Valter Hugo Mãe foi o homem certo no lugar certo e na hora certa, deixando a Flip como o autor que melhor proveito soube tirar dessa plataforma de lançamento em toda a sua história.

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