Nossa adorável, vulgar e humaníssima arte [o romance] está num de seus finais, se não estiver no fim. Mas isso não é motivo para não querer praticá-la, ou mesmo lê-la. De qualquer modo, como sacerdotes que já se esqueceram do sentido das preces que entoam, continuaremos por um bom tempo falando de livros e escrevendo livros, fingindo não notar, enquanto isso, que a igreja está vazia e os paroquianos foram embora para algum lugar a fim de venerar outros deuses, quem sabe em silêncio ou com novas palavras.
O escritor americano Gore Vidal escreveu o trecho acima num ensaio publicado em 1967 – bem antes, portanto, da onda digital que transformou em lugar-comum prever o fim do romance. Ao morrer ontem, aos 86 anos, em sua casa em Los Angeles, vítima das complicações de uma pneumonia, o ficcionista, roteirista e polemista que era um dos últimos grandes nomes da galeria de escritores-celebridades deixou a igreja um pouco mais vazia.
Seu pessimismo era parte inseparável de uma personalidade complexa em que um profundo esnobismo aristocrático se aliava à coragem de reafirmar ideias e comportamentos que lhe eram caros – laicismo, aversão ao patriotismo e à demagogia, homossexualidade – sem concessão às boas graças da opinião pública. Acertava tanto quanto errava: amante de superlativos, chamou o ex-presidente George W. Bush de “o homem mais estúpido” do país, mas dispensou a Kurt Vonnegut o epíteto de “pior escritor americano”.
O autor de “Império” e “Juliano” traduzia essa personalidade num estilo literário que a sensibilidade contemporânea talvez considere um tanto pomposo e “literário”. Como indica a metáfora da igreja, Vidal venerava as Letras com L maiúsculo a ponto de, mesmo sofrendo com sua decadência – como, evidentemente, sofria com a decadência americana – não admitir desistência:
Idealmente o escritor só precisa ter como audiência os poucos que o entendem. É cobiça e falta de modéstia querer mais.
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Atualização às 14h52: Imperdível esta seleção (da Salon.com) de momentos de pugilato televisivo estrelados por Gore Vidal. Destaque para o programa em que, com seu permanente quase-sorriso cool e suas sobrancelhas arqueadas, ele irrita Norman Mailer até levá-lo ao paroxismo do papel de palhaço. (Tudo em inglês, claro, e sem legenda.) Não resta dúvida: a vida intelectual já foi muito, mas muito mais divertida. RIP, GV.
7 Comentários
Sérgio,
Parabéns pela escolha do trecho que encabeça o post. O melhor de Vidal Gore e sua arte só poderia ser dito por ele mesmo.
Abraço!
Há muitos anos li ” Criação”, “Juliano” (excelentes) e “Dulluth” (mais ou menos). Como você bem diz, Sérgio, o estilo de Gore Vidal talvez soasse pomposo atualmente. Pior para o atualmente.
Diogo Mainardi,ainda em seus primeiros anos em Veneza, foi muito próximo de Gore Vidal. Foi uma espécie de estafeta. Nâo continuou com o ofício, mas através da sua literatura, pouco desenvolvida, acabei tomando conhecimento de Gore Vidal. Nâo li todos os seus livros, mas confesso que agora sua ausência me despertou o interesse. Voilá, Gore
Lincoln, Juliano, Criação e Burr são os melhores livros dele. Era o Suetônio americano. Um dos últimos grandes escritores americanos desta época. Agora, talvez outro só daqui a um século. Estamos vivendo uma época cuturalmente pobre.
Eu gostava do esnobismo aristocrático de Vidal.
Sem trocadilho: Vidal Gore foi de matar! Só agora percebi a inversão distraída. Mas fica valendo o elogio à sua homenagem.
Fico triste quando se perde alguém que de certa forma incomoda a sociedade. Nós escritores, em breve escreveremos em códigos, como é a atual leitura. A poesia e a literatura morrerá sem defensores como Gore Vidal.
Excelente!
Mirse S Albuquerque