Publico hoje o primeiro dos textos vencedores do I Concurso Todoprosa de Resenhas – Brasil, século 21. Terceira colocada na disputa, a resenha assinada por Gilda Oswaldo Cruz chegou de Lisboa e discorre de modo competente – ainda que em tom mais descritivo que analítico – sobre o romance “Traduzindo Hannah”, de Ronaldo Wrobel, lançado ano passado pela editora Record.
O segundo colocado será publicado na quarta-feira e o primeiro, na sexta.
Em suas próprias palavras, Gilda “é pianista e escritora. Reside na Europa desde 1984 e dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros em Barcelona. Tem CDs dedicados à música de Claudio Santoro (Biscoito Fino) e publicou em 2010 o romance ‘Na sombra do herói’ (Topbooks)”.
TRADUZINDO A CONDIÇÃO JUDAICA, de Gilda Oswaldo Cruz
Ambientado no período da violenta repressão da ditadura de Vargas aos comunistas no Rio de Janeiro, de meados da década de 30 até o fim da guerra em 1945, este é um romance de formação que reconstitui, com humor agridoce e uma rara verve narrativa, a vida, os costumes e as vicissitudes de integrantes da pequena colônia judaica carioca instalada nos arredores da extinta Praça Onze, no centro da cidade.
Quem leu “Olga”, de Fernando Morais, está lembrado da ferocidade da equipe de polícia política, treinada na Alemanha nazista e chefiada pelo major Filinto Müller, responsável durante a ditadura de Vargas por incontáveis casos de tortura, morte e perseguição de suspeitos, após a falhada Intentona Comunista de 1935. Pois a essa sinistra Delegacia, instalada na Rua da Relação, vemos comparecer o herói de “Traduzindo Hannah” na primeira e memorável cena do romance. Max Kutner é um judeu aparentemente simplório que exerce o ofício de sapateiro. Na sua aldeia polonesa natal, o avô atribuía a vocação “à sina errante da família: bons calçados venciam frios e distâncias. E o que fizera o povo judeu nos últimos milênios, senão vagar pelo mundo ou adiar a próxima expulsão?” Brandida pelo policial a ameaça da expulsão, Max é coagido a servir de tradutor do iídiche para a correspondência a ser censurada entre Brasil e Argentina. Lembre-se que os judeus, como Olga Benario, Harry Berger e tantos outros, eram particularmente suspeitos de conspiração política.
Sua primeira tarefa de censor, ali mesmo naquele primeiro dia na delegacia, já se revela cômica: um suspeito papelzinho amassado, coberto de caracteres hebraicos e encontrado no chão da Praça, revela-se como uma lista de ingredientes para a sopa borscht: quatro beterrabas, duas cebolas, etc. etc O capitão brasileiro que o interroga se abespinha: “É vermelha essa sopa?” “Sim, capitão, pelas beterrabas: pode ser servida quente ou fria, doce ou salgada.” O capitão se indigna: “Sopa de merda!”
Max Kutner não “é bonito nem feio” e não quer complicações: foge ao matrimônio, veste-se de camisas brancas e calças pretas (“para que mais?”), cala-se em qualquer discussão sobre temas religiosos ou ideológicos, não toma a sério proibições dietéticas (“antes de tomar o bonde, passava numa china da Praça Tiradentes e comia pasteis de carnes duvidosas, sua secreta adoração”), e considera que “mulheres só com preço e hora marcada”. Em contraste com a seriedade e sabedoria da religião na sua distante aldeia natal, “no Brasil tudo era diferente. A religião mais parecia um capricho, um adereço, uma pregação fortuita”.
E eis que, graças às novas atividades de censor postal, Max começa a fazer a sua iniciação ao mundo das palavras escritas, “uma grande jazida com veios coloridos”, mediante a qual ele será levado a conhecer os melhores quitutes da cidade, a entrar pela primeira vez num cinema e descobrir Chaplin e “O grande ditador” e, finalmente, a apaixonar-se por uma mulher “linda, inteligente, sábia, corajosa”, misteriosa correspondente que dá título do livro, Hannah. Não revelaremos o intrincado jogo de identidades falsas e quiproquós múltiplos, em ritmo acelerado de comédia circense, que marca o desenvolvimento do enredo. Basta dizer que entre os encantos marcantes do livro se encontra a interação entre os refugiados transplantados ao deleitoso trópico e os costumes locais, e a enumeração dos perigos para a identidade judaica que representa o “espírito gregário dos brasileiros”, justamente “o que faltava para dispersar o Povo Eleito e apagar da terra o seu legado milenar”. Outro exemplo: “Nem guerras nem massacres tinham conseguido o que meia dúzia de mulatas consumavam alegremente: dezoito divórcios no último outono”. Desembarcado em trânsito no Recife, “Max percorreu um bairro onde seios e bundas se alugavam a preços módicos. Adoraria fuçar aquelas mulheres marrons, de cabelos pretos e ancas largas, que lhe sorriam com uma candura virginal”.
Sob a superfície jocosa, e para além do estilo virituosístico e afinado, o romance de Wrobel explora uma indagação pertinente e sempre atual: o que é ser judeu? Na celebração da diversidade, na adesão à existência apesar dos pesares, a resposta que talvez encerre este livro pode ser resumida na saudação de um “pretinho” na página 199: “Le Chaim!” (O saboroso glossário iídiche no fim do livro nos ensina tratar-se de um brinde à vida.)
Poderíamos nos perguntar, diante deste segundo e excelente romance do carioca Ronaldo Wrobel, o que falta para que surja no Brasil um grupo de escritores judeus pesos-pesados, como nos Estados Unidos o foram e têm sido Saul Bellow, Philip Roth, Bernard Malamud, Isaac Bashevis Singer e outros tantos, para não falar nessa síntese do humor judaico que é Woody Allen.
7 Comentários
Muito boa a resenha, Sérgio. Você leu esse romance?
Ainda não, mas pretendo. Inclusive porque lida com o mesmo momento histórico de “Elza, a garota”.
Prezado Sérgio, quem comenta é um (idoso) fã – seu e da coluna. Gostei da resenha e só não atinei com a advertência da mesma ser mais “descritiva que analítica”. Seu comentário foi (digamos assim) “normativo”? Seu atencioso seguidor, Amilton M Oliveira.
Caro Amilton, não quis soar normativo, apenas, digamos, descritivo. A boa resenha de Gilda descreve mais do que analisa, apenas isso. Seria ótima, para o meu gosto, se tentasse ir alem do que o autor quis dizer e avançasse por regiões de maior risco interpretativo, como creio que as duas outras premiadas fazem. Um abraço.
Acho que Gilda Oswaldo Cruz acertou em cheio: esse livro é daqueles que a gente atravessa com prazer, sem um minuto de sacrifício. Ainda que relativamente “suspeita”, porque sou no momento agente literária de Ronaldo Wrobel, sempre fui leitora ávida dos pesos-pesados americanos-judeus citados. Ah, um Philip Roth se lê com prazer quanto mais se repete… No Brasil, a arrogância e a “descoberta da roda” dominam várias esferas, e não só literárias, digamos. Como explicar que tantos dos nossos jovens escritores pareçam ter como alvo a “dor” do leitor? Sacrifiquem-se, leitores! – poderia ser o mote de tantos. Não defendo a superficialidade nem a leveza sem propósito, mas simplesmente a qualidade e a legibilidade. O trabalho tem que ser do escritor… Dezenas de autores espanhóis contemporâneos, ou argentinos, para ficar perto, descobriram isso há bastante tempo.
Também gostei da resenha porque me instigou. Já tinha comprado, mas não lido, “Traduzindo Hannah”. Estava lá pelo meio da pilha das próximas leituras, mas agora vai para o topo. abç.
Prezado Sérgio, obrigado pela atenção. Vou aguardar as duas próximas resenhas e fazer as comparações. A propósito, o senhor estaria se referindo (“maior risco interpretativo”) a um possível desvelamento da estratégia narrativa? Só para entender, creia. Atenciosamente.
Já que você comentou Elza, a garota, quero lembrar que esse mix de ficção e realidade “ensina” mais História que muito livro de História. Nesse campo, meu favorito é Sefarad, do Muñoz Molina, um retrato dos deslocamentos de milhões de pessoas pela Europa nas décadas seguintes à Segunda Guerra. É a literatura espanhola classe A e sem marqueses….Em outro patamar, que me vem à mente pois é um dos melhores retratos do Brasil que conheço (e pode ser lido como se fosse boa ficção, prazerosamente), é o livro que resultou de pesquisa minuciosa de Alberto Dines, Morte no Paraíso. O livro de Gilda Oswaldo Cruz, biografia romanceada de sua família, também é um retrato que se lê com prazer sobre a primeira metade do século 20 nos trópicos recém-saídos da escravidão. Em comum aos citados, o domínio da língua e a capacidade de sair de si para descrever o Outro, o que é um alento para o leitor cansado de umbigos poderosos…